sábado, 14 de junho de 2025

O Dilúvio na Tradição Babilônica: Análise e Comparação com o Relato Bíblico - Parte 3

Por Walson Sales

A história do dilúvio, conforme relatada no Épico de Gilgamesh, é uma das versões mais antigas de uma catástrofe global na literatura humana. Encontrada na 11ª tabuinha da famosa Epopeia assírio-babilônica, ela é uma das narrativas mais impressionantes, revelando detalhes que se assemelham de maneira notável ao relato bíblico. O poema, que originalmente pertence à tradição suméria, foi ampliado na Babilônia e é amplamente reconhecido como um dos maiores exemplos da literatura mesopotâmica.

Este artigo busca explorar a narrativa babilônica do dilúvio, destacando suas semelhanças e diferenças com o relato bíblico, além de apresentar uma análise crítica e apologética sobre a relação entre essas histórias, com ênfase na defesa da autenticidade e veracidade do relato bíblico.

2. O Contexto do Épico de Gilgamesh e a Figura de Utnapishtim

O Épico de Gilgamesh é um poema épico da Mesopotâmia que descreve as aventuras do semi-divino rei Gilgamesh, de Uruk. O ponto culminante da narrativa ocorre na 11ª tabuinha, onde o herói Gilgamesh busca a imortalidade e encontra Utnapishtim, um homem que sobreviveu ao dilúvio enviado pelos deuses. Utnapishtim, uma figura que tem paralelos com Noé da Bíblia, revela a Gilgamesh como obteve a imortalidade, contando-lhe a história do dilúvio e sua própria salvação.

A narrativa de Utnapishtim é rica em detalhes e exibe uma série de semelhanças com o relato bíblico de Noé, incluindo o aviso divino, a construção de um grande barco, a coleta de animais e a salvação de um pequeno grupo de pessoas. Contudo, há significativas diferenças no enredo e nas razões para o dilúvio, assim como nas atitudes dos deuses.

3. As Semelhanças Entre o Relato Babilônico e o Bíblico

Apesar das diferenças, a história de Utnapishtim apresenta elementos notavelmente semelhantes aos encontrados na narrativa bíblica do dilúvio. Algumas dessas semelhanças incluem:

- Aviso Divino e Construção do Barco: Assim como Noé recebe um aviso de Deus para construir uma arca, Utnapishtim é informado do dilúvio iminente e recebe instruções divinas para construir um grande barco, com detalhes precisos sobre sua construção (120 cúbitos em cada direção, seis andares, e calafetamento com betume). Ambos os heróis são instruídos a salvar sua família, animais e "sementes de todas as coisas vivas". 

- A Tempestade e a Arca: Ambos os relatos descrevem uma tempestade cataclísmica que destrói a humanidade. No *Épico de Gilgamesh*, os deuses enviam um dilúvio arrasador, assim como o Deus da Bíblia envia as águas para purificar a Terra.

- A Pomba, a Andorinha e o Corvo: Semelhante ao relato bíblico, onde Noé envia uma pomba para verificar a redução das águas, Utnapishtim também solta uma pomba, uma andorinha e um corvo, que retornam com diferentes resultados, indicando a recuo das águas.

- O Sacrifício Pós-Dilúvio: Após o fim do dilúvio, Utnapishtim oferece um sacrifício aos deuses, um evento que também é registrado na Bíblia, onde Noé oferece sacrifícios a Deus como sinal de gratidão pela salvação.

4. As Diferenças Entre o Relato Babilônico e o Bíblico

Embora a narrativa de Gilgamesh compartilhe várias semelhanças com a história bíblica, existem diferenças cruciais que não podem ser ignoradas:

- Motivação para o Dilúvio: No relato babilônico, o dilúvio é enviado pelos deuses como uma punição pela superpopulação humana, que está perturbando a paz e a ordem divina. Em contraste, a Bíblia apresenta o dilúvio como uma resposta à corrupção moral e ao pecado da humanidade (Gênesis 6:5-7).

- A Natureza dos Deuses: No Épico de Gilgamesh, os deuses são retratados como caprichosos, com sentimentos humanos e muitas vezes em desacordo entre si. Eles não têm um plano divino claro e, no final, as decisões de punição e misericórdia são tomadas com base em disputas entre eles. No entanto, o Deus bíblico é mostrado como soberano e justo, com um propósito claro e eterno para a humanidade, incluindo a promessa de preservação por meio de Noé.

- Imortalidade e a Visão do Fim:Utnapishtim recebe a imortalidade como uma recompensa por sua sobrevivência ao dilúvio, sendo transformado em um ser divino. Por outro lado, o relato bíblico não sugere que Noé ou seus descendentes sejam imortalizados, mas que, por sua fé, receberam a promessa de preservação e um novo começo para a humanidade.

5. Análise Apologética e Crítica

A alegação de que o relato bíblico do dilúvio é um "plágio" do Épico de Gilgamesh ignora várias questões importantes:

- Datação e Origem das Narrativas: Embora o Épico de Gilgamesh seja mais antigo em termos de registro escrito, o dilúvio bíblico, conforme apresentado na tradição hebraica, é considerado por muitos estudiosos como uma versão mais antiga da história. A tradição oral que precedeu os registros escritos pode ser muito mais antiga e compartilhar origens comuns com a tradição babilônica, sem que a Bíblia tenha "plagiado" a história. A explicação mais plausível é que ambas as culturas preservaram uma história ancestral comum, que foi transmitida e adaptada ao longo do tempo.

-A Perspectiva Teológica Diferente: A grande diferença na teologia das duas histórias – a natureza moral e a justiça de Deus no relato bíblico, versus os caprichos dos deuses no Épico de Gilgamesh – sugere que, embora ambas as narrativas compartilhem uma base comum, elas têm intenções e propósitos muito diferentes. A Bíblia transmite uma mensagem de redenção e justiça divina, enquanto o Épico de Gilgamesh oferece uma visão mais fatalista e desorganizada da divindade.

-Relevância Histórica e Literária: Não podemos subestimar a importância do relato bíblico do dilúvio. O fato de existirem várias versões dessa história ao redor do mundo, incluindo as civilizações mesopotâmicas, não diminui a veracidade da narrativa bíblica, mas a coloca dentro de um contexto mais amplo de relatos antigos, que compartilhavam uma memória coletiva de um evento catastrófico global.

6. Conclusão

O Épico de Gilgamesh e a narrativa bíblica do dilúvio compartilham semelhanças impressionantes, mas também apresentam diferenças significativas que refletem as distintas perspectivas teológicas de cada tradição. A acusação de que a Bíblia plagiou a história babilônica ignora o fato de que tanto o relato bíblico quanto o babilônico podem ter raízes comuns em uma tradição mais antiga, com a versão bíblica preservando uma interpretação teológica única e mais coesa.

Através de uma análise cuidadosa, é possível defender a autenticidade do relato bíblico, não como uma adaptação ou cópia de mitos antigos, mas como um testemunho fiel de um evento histórico de importância cósmica. A versão bíblica do dilúvio não é meramente um mito, mas uma narrativa teológica que reflete a justiça e misericórdia divinas, com a promessa de um novo começo para a humanidade.

Referências:

- Dalley, S. (2008). Myths from Mesopotamia: Creation, the Flood, Gilgamesh, and Others. Oxford University Press.

- Finkel, I. L. (1998). The Ark Before Noah: Decoding the Story of the Flood. Hodder & Stoughton.

- Geisler, N. (2002). Enciclopédia de Apologética, Editora Vida.

- George, A. (2003). The Epic of Gilgamesh. Penguin Classics.

- Unger, Merril F. (1980). A arqueologia do Velho Testamento, Imprensa Batista Regular.

- Tigay, J. H. (1996). The Evolution of the Gilgamesh Epic. The University of Pennsylvania Press.

O Dilúvio na Tradição Suméria: Análise e Comparação com o Relato Bíblico

Parte 2 da Série sobre o Épico de Gilgamesh

Por Walson Sales

O relato do dilúvio é uma das narrativas mais antigas da humanidade e aparece em diversas culturas ao redor do mundo. Dentre essas tradições, a versão suméria é considerada a mais antiga encontrada em registros escritos, precedendo os relatos babilônicos e o próprio texto bíblico. Críticos da Bíblia frequentemente argumentam que a semelhança entre a narrativa suméria e o relato bíblico do dilúvio sugere que o livro de Gênesis teria tomado emprestado ou plagiado essa tradição.

Neste artigo, analisaremos a narrativa suméria do dilúvio, explorando seu conteúdo, as semelhanças e diferenças com o relato bíblico e as respostas apologéticas a essa crítica.

1. A Narrativa Suméria do Dilúvio

A mais antiga versão do Dilúvio conhecida foi encontrada em fragmentos de uma placa na antiga cidade de Nipur, localizada na Babilônia norte-central. Essa placa, escrita em sumério, remonta a *cerca de 2000 a.C. ou antes*, sendo uma das mais antigas evidências escritas da história do dilúvio (Kramer, 1981, p. 148).

Principais Elementos da Narrativa Suméria

I. Destruição e Criação

A placa começa relatando uma destruição anterior da humanidade e a subsequente criação dos seres humanos e animais.   

II. Fundação das Cidades pela Divindade  

Um dos deuses principais estabelece cinco cidades, como Eridu, Sipar e Churupaque, designando deuses tutelares para cada uma.

III. A Deusa Istar (Ninhursague) e o Rei Ziusudra

A deusa Istar lamenta a destruição iminente da humanidade.

Ziusudra, um rei-sacerdote, recebe uma revelação sobre o desastre iminente (Tigay, Jeffrey H. - The Evolution of the Gilgamesh Epic, 2002, p. 75).

Ele constrói um ídolo de madeira e o adora diariamente. 

IV. A Comunicação Divina e a Chegada do Dilúvio 

Ziusudra recebe uma ordem divina para se posicionar perto de uma parede e escutar a revelação do propósito dos deuses de destruir a humanidade.  

O dilúvio começa, trazendo chuvas tempestuosas e ventos fortes* que duram sete dias e sete noites (Lambert, W. G. & Millard, A. R. - Atra-Hasis: The Babylonian Story of the Flood, 1969, p. 23).  

A embarcação de Ziusudra é levada pelas águas, e quando o sol reaparece, ele faz um sacrifício aos deuses.

V. O Dom da Imortalidade

Como recompensa, Ziusudra recebe *vida eterna* e é levado à “Montanha de Dilmum”, um local paradisíaco (Heidel, Alexander - The Gilgamesh Epic and Old Testament Parallels, 1946, p. 102).

2. Comparação com o Relato Bíblico

Embora existam semelhanças superficiais entre a narrativa suméria e o relato bíblico do dilúvio em Gênesis 6–9, as diferenças são significativas e sugerem que as duas tradições possuem origens e propósitos distintos.

2.1 Semelhanças

I. Tema do Dilúvio– Ambas as narrativas descrevem um grande dilúvio que destrói a humanidade.

II. Personagem Central – Tanto Noé (Bíblia) quanto Ziusudra (Sumério) são personagens que sobrevivem ao dilúvio.

III. Arca/Navio– Nos dois relatos, o protagonista constrói um grande barco para sobreviver.  

IV. Sacrifício após o Dilúvio – Ambos realizam sacrifícios aos deuses ou a Deus depois da tempestade.  

2.2 Diferenças Fundamentais

No trecho 2.2, intitulado Diferenças Fundamentais, podemos observar um contraste claro entre a narrativa suméria do dilúvio e o relato bíblico. A tabela a seguir resume essas diferenças:

A narrativa suméria do dilúvio não apresenta um motivo moral claro para a destruição. O dilúvio é apresentado como um capricho dos deuses, sem uma explicação ética por trás do evento. Já o relato bíblico de Gênesis destaca que o dilúvio ocorreu como uma resposta ao pecado e à corrupção da humanidade, sendo um ato divino justificado por razões morais, conforme descrito em Gênesis 6:5-7.

Outra diferença relevante é a natureza dos deuses envolvidos. Na narrativa suméria, os deuses são politeístas e frequentemente estão em conflito entre si, o que reflete uma visão de mundo mais fragmentada. Em contraste, o relato bíblico é monoteísta, com Deus descrito como soberano e justo, tendo um controle absoluto sobre os eventos da criação e da destruição.

A maneira como a revelação ocorre também diverge. No épico Sumério, Ziusudra, o sobrevivente do dilúvio, recebe a ordem divina de forma indireta, por meio de um sonho ou mensagem de um deus. No relato bíblico, Noé recebe instruções diretas de Deus, o que estabelece uma relação mais clara e imediata entre o homem e o Criador.

A moralidade também se distingue: na narrativa suméria, não há uma razão ética clara para a destruição ou a salvação. A salvação de Ziusudra parece ser arbitrária, enquanto na Bíblia, Noé é descrito como um homem justo e íntegro, o que justifica sua preservação (Gênesis 6:9).

Por fim, o destino dos sobreviventes também apresenta contrastes significativos. Após o dilúvio, Ziusudra recebe a imortalidade e é levado a um paraíso, um prêmio pela sua sobrevivência. Noé, por outro lado, continua sua vida na Terra, sendo responsável por gerar novas gerações e civilizações, refletindo o plano contínuo de Deus para a humanidade.

Essas diferenças fundamentais entre as duas narrativas ajudam a estabelecer a originalidade e a profundidade teológica do relato bíblico em comparação com a versão suméria do dilúvio.

Essas diferenças demonstram que a cosmovisão teológica e moral do relato bíblico é muito mais elaborada e estruturada do que a tradição suméria, que apresenta um caráter mítico e antropomórfico dos deuses.

3. O Relato Bíblico é um Plágio da Tradição Suméria?

Os críticos alegam que, pelo fato de a narrativa suméria ser mais antiga, o relato bíblico seria um plágio ou adaptação posterior. No entanto, essa tese apresenta sérios problemas:

3.1 Idade do Registro Não Define a Origem da Tradição

Apenas porque a versão escrita suméria é mais antiga, isso não significa que a história do dilúvio tenha se originado com os sumérios. Se o dilúvio foi um evento real, é natural que diferentes povos o registrassem em suas tradições, cada um com sua própria interpretação cultural (Sarfati, Jonathan - The Genesis Account, 2015, p. 211).

3.2 Diferenças Estruturais e Teológicas

Se Moisés tivesse plagiado os sumérios, esperava-se que o relato bíblico contivesse os mesmos elementos míticos e politeístas. Mas o texto de Gênesis apresenta um Deus único, moralmente justo e soberano, algo totalmente distinto da tradição suméria e babilônica (Walton, John H. - Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament, 2009, p. 83).

3.3 Origem Oral e a Tradição de Transmissão 

Muitos estudiosos cristãos sugerem que a tradição do dilúvio era preservada oralmente por gerações desde Noé, sendo posteriormente registrada por diferentes culturas com variações. O relato bíblico, portanto, não depende da versão suméria, mas preserva a tradição original de forma mais precisa (Finkel, Irving - The Ark Before Noah: Decoding the Story of the Flood, 2014, p. 67). 

Conclusão

A análise da narrativa suméria do dilúvio mostra que embora existam semelhanças com o relato bíblico, as diferenças são profundas e essenciais. O relato bíblico do dilúvio *não depende* da tradição mesopotâmica, mas se encaixa na cosmovisão judaico-cristã de um Deus justo e soberano.

No próximo artigo (Parte 3), analisaremos a narrativa babilônica do dilúvio, encontrada na Epopeia de Gilgamesh, e veremos como suas diferenças com o relato bíblico reforçam a singularidade e autenticidade da história registrada em Gênesis.

O Épico de Enuma Elish e o Relato Bíblico da Criação: Uma Análise Comparativa – Parte 1

Por Walson Sales

A narrativa da criação no livro de Gênesis tem sido alvo de intensos debates acadêmicos, especialmente no contexto dos estudos sobre o Antigo Oriente Próximo. Alguns críticos argumentam que o relato bíblico teria sido influenciado ou até mesmo derivado do Épico de Enuma Elish, um mito babilônico sobre a origem do mundo e dos deuses. Para esses estudiosos, as semelhanças entre as duas narrativas indicariam que os hebreus simplesmente adaptaram uma tradição mitológica mais antiga.

No entanto, essa alegação precisa ser cuidadosamente analisada à luz da arqueologia, da história e da teologia. A descoberta das tábuas do Enuma Elish, seu contexto histórico e suas características literárias revelam um caráter distinto da narrativa bíblica. Enquanto o relato mesopotâmico está imerso em um politeísmo mitológico e em uma estrutura de propaganda política, o relato bíblico se destaca por sua clareza monoteísta e por sua abordagem teológica única.

Neste primeiro artigo da série, analisaremos a descoberta do Enuma Elish, sua estrutura e seu contexto histórico, preparando o terreno para uma análise mais profunda das semelhanças e diferenças entre essa narrativa e o relato de Gênesis.

1. A Descoberta do Épico de Enuma Elish

A compreensão moderna do Épico de Enuma Elish deve muito às escavações arqueológicas realizadas no século XIX. Antes da decifração da escrita cuneiforme, a Mesopotâmia era um vasto cemitério de civilizações enterradas. No entanto, com a descoberta da Inscrição de Behistun, em 1835, os estudiosos começaram a desvendar os segredos dessa antiga cultura.

1.1 Achados em Nínive

Entre os anos de 1848 e 1876, os arqueólogos Austen H. Layard, Hormuzd Rassam e George Smith realizaram escavações na antiga cidade de Nínive, capital do Império Assírio. Entre os achados mais significativos estava a biblioteca do rei Assurbanípal (668-626 a.C.), onde foram recuperadas diversas tábuas e fragmentos de tábuas que continham o Épico de Enuma Elish.

Essa epopeia, escrita em caracteres cuneiformes, está registrada em sete tábuas de barro e contém aproximadamente mil linhas. Seu título provém das palavras iniciais do texto, Enuma Elish ("Quando nas alturas"), uma prática comum nos textos do Antigo Oriente Próximo.

1.2 Outros Fragmentos e Datação

Desde a descoberta inicial, arqueólogos encontraram fragmentos adicionais do Enuma Elish, permitindo a reconstrução quase completa do texto. A versão mais conhecida foi preservada na biblioteca de Assurbanípal, no século VII a.C., mas os estudiosos acreditam que o poema foi composto muito antes, provavelmente durante o reinado de Hamurabi (1728-1676 a.C.).

No entanto, a origem do Enuma Elish remonta a tradições ainda mais antigas. Muitos estudiosos reconhecem que ele tem raízes nas narrativas dos sumérios, um povo não semita que habitava a Baixa Mesopotâmia desde pelo menos 4000 a.C. A escrita cuneiforme, usada para registrar o Enuma Elish, foi desenvolvida por esses sumérios e posteriormente adotada pelos babilônios.

2. O Contexto Histórico e a Função do Enuma Elish

O Épico de Enuma Elish não é apenas um mito de criação, mas também um documento de propaganda política e religiosa. Ele exalta a supremacia da Babilônia e de seu deus Marduque sobre outras divindades e cidades. Esse aspecto é essencial para entender sua composição e finalidade.

2.1 A Ascensão da Babilônia e a Exaltação de Marduque

O poema foi escrito durante um período de ascensão da Babilônia ao status de potência dominante na Mesopotâmia. Antes disso, diversas cidades-estado disputavam poder na região, cada uma com seus próprios deuses principais. Com a consolidação do império babilônico, tornou-se necessário justificar a supremacia de sua divindade tutelar, Marduque.

Assim, o Enuma Elish descreve Marduque derrotando as forças do caos, representadas pela deusa Tiamat, e organizando o cosmos. Como recompensa, ele é declarado o rei dos deuses, reforçando a ideia de que a Babilônia era a cidade escolhida dos deuses e seu rei governava com legitimidade divina.

2.2 Diferenças Fundamentais com Gênesis

Essa estrutura contrasta fortemente com o relato bíblico da criação. Enquanto o Enuma Elish apresenta uma cosmogonia politeísta, onde deuses travam batalhas pelo poder, Gênesis 1 descreve um Deus único, que cria todas as coisas por meio de sua palavra soberana, sem necessidade de combates ou conquistas.

Além disso, enquanto o Enuma Elish tem uma função clara de legitimar o domínio político e religioso da Babilônia, Gênesis apresenta um relato teológico atemporal, independente de circunstâncias políticas específicas.

Conclusão

A descoberta do Épico de Enuma Elish foi um marco importante na arqueologia do Antigo Oriente Próximo e levantou questões sobre a relação entre a mitologia mesopotâmica e o relato bíblico da criação. No entanto, uma análise cuidadosa revela diferenças fundamentais entre as duas narrativas.

O Enuma Elish reflete um contexto politeísta e político, exaltando Marduque como deus supremo e justificando a primazia da Babilônia. Já Gênesis apresenta uma cosmovisão monoteísta única, onde um Deus transcendente cria o universo de forma ordenada e soberana. 

Nos próximos artigos, exploraremos as semelhanças e diferenças específicas entre o Enuma Elish e o relato de Gênesis, demonstrando que a alegação de que os hebreus copiaram esse mito carece de base sólida. A Bíblia não apenas se distingue das narrativas pagãs, mas também apresenta uma visão muito mais coerente e teologicamente elevada da criação do mundo.  

Grande parte do que discutimos aqui pode ser encontrado em Arqueologia do Antigo Testamento, de Merrill F. Unger, um excelente recurso para quem deseja se aprofundar no tema. Se você deseja compreender melhor o contexto arqueológico e histórico do Antigo Testamento, vale a pena adquirir esse livro e estudar seus argumentos detalhadamente.