Por Walson Sales
A narrativa da criação no livro de Gênesis tem sido alvo de intensos debates acadêmicos, especialmente no contexto dos estudos sobre o Antigo Oriente Próximo. Alguns críticos argumentam que o relato bíblico teria sido influenciado ou até mesmo derivado do Épico de Enuma Elish, um mito babilônico sobre a origem do mundo e dos deuses. Para esses estudiosos, as semelhanças entre as duas narrativas indicariam que os hebreus simplesmente adaptaram uma tradição mitológica mais antiga.
No entanto, essa alegação precisa ser cuidadosamente analisada à luz da arqueologia, da história e da teologia. A descoberta das tábuas do Enuma Elish, seu contexto histórico e suas características literárias revelam um caráter distinto da narrativa bíblica. Enquanto o relato mesopotâmico está imerso em um politeísmo mitológico e em uma estrutura de propaganda política, o relato bíblico se destaca por sua clareza monoteísta e por sua abordagem teológica única.
Neste primeiro artigo da série, analisaremos a descoberta do Enuma Elish, sua estrutura e seu contexto histórico, preparando o terreno para uma análise mais profunda das semelhanças e diferenças entre essa narrativa e o relato de Gênesis.
1. A Descoberta do Épico de Enuma Elish
A compreensão moderna do Épico de Enuma Elish deve muito às escavações arqueológicas realizadas no século XIX. Antes da decifração da escrita cuneiforme, a Mesopotâmia era um vasto cemitério de civilizações enterradas. No entanto, com a descoberta da Inscrição de Behistun, em 1835, os estudiosos começaram a desvendar os segredos dessa antiga cultura.
1.1 Achados em Nínive
Entre os anos de 1848 e 1876, os arqueólogos Austen H. Layard, Hormuzd Rassam e George Smith realizaram escavações na antiga cidade de Nínive, capital do Império Assírio. Entre os achados mais significativos estava a biblioteca do rei Assurbanípal (668-626 a.C.), onde foram recuperadas diversas tábuas e fragmentos de tábuas que continham o Épico de Enuma Elish.
Essa epopeia, escrita em caracteres cuneiformes, está registrada em sete tábuas de barro e contém aproximadamente mil linhas. Seu título provém das palavras iniciais do texto, Enuma Elish ("Quando nas alturas"), uma prática comum nos textos do Antigo Oriente Próximo.
1.2 Outros Fragmentos e Datação
Desde a descoberta inicial, arqueólogos encontraram fragmentos adicionais do Enuma Elish, permitindo a reconstrução quase completa do texto. A versão mais conhecida foi preservada na biblioteca de Assurbanípal, no século VII a.C., mas os estudiosos acreditam que o poema foi composto muito antes, provavelmente durante o reinado de Hamurabi (1728-1676 a.C.).
No entanto, a origem do Enuma Elish remonta a tradições ainda mais antigas. Muitos estudiosos reconhecem que ele tem raízes nas narrativas dos sumérios, um povo não semita que habitava a Baixa Mesopotâmia desde pelo menos 4000 a.C. A escrita cuneiforme, usada para registrar o Enuma Elish, foi desenvolvida por esses sumérios e posteriormente adotada pelos babilônios.
2. O Contexto Histórico e a Função do Enuma Elish
O Épico de Enuma Elish não é apenas um mito de criação, mas também um documento de propaganda política e religiosa. Ele exalta a supremacia da Babilônia e de seu deus Marduque sobre outras divindades e cidades. Esse aspecto é essencial para entender sua composição e finalidade.
2.1 A Ascensão da Babilônia e a Exaltação de Marduque
O poema foi escrito durante um período de ascensão da Babilônia ao status de potência dominante na Mesopotâmia. Antes disso, diversas cidades-estado disputavam poder na região, cada uma com seus próprios deuses principais. Com a consolidação do império babilônico, tornou-se necessário justificar a supremacia de sua divindade tutelar, Marduque.
Assim, o Enuma Elish descreve Marduque derrotando as forças do caos, representadas pela deusa Tiamat, e organizando o cosmos. Como recompensa, ele é declarado o rei dos deuses, reforçando a ideia de que a Babilônia era a cidade escolhida dos deuses e seu rei governava com legitimidade divina.
2.2 Diferenças Fundamentais com Gênesis
Essa estrutura contrasta fortemente com o relato bíblico da criação. Enquanto o Enuma Elish apresenta uma cosmogonia politeísta, onde deuses travam batalhas pelo poder, Gênesis 1 descreve um Deus único, que cria todas as coisas por meio de sua palavra soberana, sem necessidade de combates ou conquistas.
Além disso, enquanto o Enuma Elish tem uma função clara de legitimar o domínio político e religioso da Babilônia, Gênesis apresenta um relato teológico atemporal, independente de circunstâncias políticas específicas.
Conclusão
A descoberta do Épico de Enuma Elish foi um marco importante na arqueologia do Antigo Oriente Próximo e levantou questões sobre a relação entre a mitologia mesopotâmica e o relato bíblico da criação. No entanto, uma análise cuidadosa revela diferenças fundamentais entre as duas narrativas.
O Enuma Elish reflete um contexto politeísta e político, exaltando Marduque como deus supremo e justificando a primazia da Babilônia. Já Gênesis apresenta uma cosmovisão monoteísta única, onde um Deus transcendente cria o universo de forma ordenada e soberana.
Nos próximos artigos, exploraremos as semelhanças e diferenças específicas entre o Enuma Elish e o relato de Gênesis, demonstrando que a alegação de que os hebreus copiaram esse mito carece de base sólida. A Bíblia não apenas se distingue das narrativas pagãs, mas também apresenta uma visão muito mais coerente e teologicamente elevada da criação do mundo.
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