Parte 2 da Série sobre o Épico de Gilgamesh
Por Walson Sales
O relato do dilúvio é uma das narrativas mais antigas da humanidade e aparece em diversas culturas ao redor do mundo. Dentre essas tradições, a versão suméria é considerada a mais antiga encontrada em registros escritos, precedendo os relatos babilônicos e o próprio texto bíblico. Críticos da Bíblia frequentemente argumentam que a semelhança entre a narrativa suméria e o relato bíblico do dilúvio sugere que o livro de Gênesis teria tomado emprestado ou plagiado essa tradição.
Neste artigo, analisaremos a narrativa suméria do dilúvio, explorando seu conteúdo, as semelhanças e diferenças com o relato bíblico e as respostas apologéticas a essa crítica.
1. A Narrativa Suméria do Dilúvio
A mais antiga versão do Dilúvio conhecida foi encontrada em fragmentos de uma placa na antiga cidade de Nipur, localizada na Babilônia norte-central. Essa placa, escrita em sumério, remonta a *cerca de 2000 a.C. ou antes*, sendo uma das mais antigas evidências escritas da história do dilúvio (Kramer, 1981, p. 148).
Principais Elementos da Narrativa Suméria
I. Destruição e Criação
A placa começa relatando uma destruição anterior da humanidade e a subsequente criação dos seres humanos e animais.
II. Fundação das Cidades pela Divindade
Um dos deuses principais estabelece cinco cidades, como Eridu, Sipar e Churupaque, designando deuses tutelares para cada uma.
III. A Deusa Istar (Ninhursague) e o Rei Ziusudra
A deusa Istar lamenta a destruição iminente da humanidade.
Ziusudra, um rei-sacerdote, recebe uma revelação sobre o desastre iminente (Tigay, Jeffrey H. - The Evolution of the Gilgamesh Epic, 2002, p. 75).
Ele constrói um ídolo de madeira e o adora diariamente.
IV. A Comunicação Divina e a Chegada do Dilúvio
Ziusudra recebe uma ordem divina para se posicionar perto de uma parede e escutar a revelação do propósito dos deuses de destruir a humanidade.
O dilúvio começa, trazendo chuvas tempestuosas e ventos fortes* que duram sete dias e sete noites (Lambert, W. G. & Millard, A. R. - Atra-Hasis: The Babylonian Story of the Flood, 1969, p. 23).
A embarcação de Ziusudra é levada pelas águas, e quando o sol reaparece, ele faz um sacrifício aos deuses.
V. O Dom da Imortalidade
Como recompensa, Ziusudra recebe *vida eterna* e é levado à “Montanha de Dilmum”, um local paradisíaco (Heidel, Alexander - The Gilgamesh Epic and Old Testament Parallels, 1946, p. 102).
2. Comparação com o Relato Bíblico
Embora existam semelhanças superficiais entre a narrativa suméria e o relato bíblico do dilúvio em Gênesis 6–9, as diferenças são significativas e sugerem que as duas tradições possuem origens e propósitos distintos.
2.1 Semelhanças
I. Tema do Dilúvio– Ambas as narrativas descrevem um grande dilúvio que destrói a humanidade.
II. Personagem Central – Tanto Noé (Bíblia) quanto Ziusudra (Sumério) são personagens que sobrevivem ao dilúvio.
III. Arca/Navio– Nos dois relatos, o protagonista constrói um grande barco para sobreviver.
IV. Sacrifício após o Dilúvio – Ambos realizam sacrifícios aos deuses ou a Deus depois da tempestade.
2.2 Diferenças Fundamentais
No trecho 2.2, intitulado Diferenças Fundamentais, podemos observar um contraste claro entre a narrativa suméria do dilúvio e o relato bíblico. A tabela a seguir resume essas diferenças:
A narrativa suméria do dilúvio não apresenta um motivo moral claro para a destruição. O dilúvio é apresentado como um capricho dos deuses, sem uma explicação ética por trás do evento. Já o relato bíblico de Gênesis destaca que o dilúvio ocorreu como uma resposta ao pecado e à corrupção da humanidade, sendo um ato divino justificado por razões morais, conforme descrito em Gênesis 6:5-7.
Outra diferença relevante é a natureza dos deuses envolvidos. Na narrativa suméria, os deuses são politeístas e frequentemente estão em conflito entre si, o que reflete uma visão de mundo mais fragmentada. Em contraste, o relato bíblico é monoteísta, com Deus descrito como soberano e justo, tendo um controle absoluto sobre os eventos da criação e da destruição.
A maneira como a revelação ocorre também diverge. No épico Sumério, Ziusudra, o sobrevivente do dilúvio, recebe a ordem divina de forma indireta, por meio de um sonho ou mensagem de um deus. No relato bíblico, Noé recebe instruções diretas de Deus, o que estabelece uma relação mais clara e imediata entre o homem e o Criador.
A moralidade também se distingue: na narrativa suméria, não há uma razão ética clara para a destruição ou a salvação. A salvação de Ziusudra parece ser arbitrária, enquanto na Bíblia, Noé é descrito como um homem justo e íntegro, o que justifica sua preservação (Gênesis 6:9).
Por fim, o destino dos sobreviventes também apresenta contrastes significativos. Após o dilúvio, Ziusudra recebe a imortalidade e é levado a um paraíso, um prêmio pela sua sobrevivência. Noé, por outro lado, continua sua vida na Terra, sendo responsável por gerar novas gerações e civilizações, refletindo o plano contínuo de Deus para a humanidade.
Essas diferenças fundamentais entre as duas narrativas ajudam a estabelecer a originalidade e a profundidade teológica do relato bíblico em comparação com a versão suméria do dilúvio.
Essas diferenças demonstram que a cosmovisão teológica e moral do relato bíblico é muito mais elaborada e estruturada do que a tradição suméria, que apresenta um caráter mítico e antropomórfico dos deuses.
3. O Relato Bíblico é um Plágio da Tradição Suméria?
Os críticos alegam que, pelo fato de a narrativa suméria ser mais antiga, o relato bíblico seria um plágio ou adaptação posterior. No entanto, essa tese apresenta sérios problemas:
3.1 Idade do Registro Não Define a Origem da Tradição
Apenas porque a versão escrita suméria é mais antiga, isso não significa que a história do dilúvio tenha se originado com os sumérios. Se o dilúvio foi um evento real, é natural que diferentes povos o registrassem em suas tradições, cada um com sua própria interpretação cultural (Sarfati, Jonathan - The Genesis Account, 2015, p. 211).
3.2 Diferenças Estruturais e Teológicas
Se Moisés tivesse plagiado os sumérios, esperava-se que o relato bíblico contivesse os mesmos elementos míticos e politeístas. Mas o texto de Gênesis apresenta um Deus único, moralmente justo e soberano, algo totalmente distinto da tradição suméria e babilônica (Walton, John H. - Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament, 2009, p. 83).
3.3 Origem Oral e a Tradição de Transmissão
Muitos estudiosos cristãos sugerem que a tradição do dilúvio era preservada oralmente por gerações desde Noé, sendo posteriormente registrada por diferentes culturas com variações. O relato bíblico, portanto, não depende da versão suméria, mas preserva a tradição original de forma mais precisa (Finkel, Irving - The Ark Before Noah: Decoding the Story of the Flood, 2014, p. 67).
Conclusão
A análise da narrativa suméria do dilúvio mostra que embora existam semelhanças com o relato bíblico, as diferenças são profundas e essenciais. O relato bíblico do dilúvio *não depende* da tradição mesopotâmica, mas se encaixa na cosmovisão judaico-cristã de um Deus justo e soberano.
No próximo artigo (Parte 3), analisaremos a narrativa babilônica do dilúvio, encontrada na Epopeia de Gilgamesh, e veremos como suas diferenças com o relato bíblico reforçam a singularidade e autenticidade da história registrada em Gênesis.
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