Um apelo à integridade do evangelho e à responsabilidade humana diante da graça soberana de Deus
Por Walson Sales
A história da teologia cristã é marcada por disputas que, embora muitas vezes motivadas por zelo pela verdade, acabaram distorcendo aspectos fundamentais da fé bíblica. Um desses confrontos ocorreu no século XIX, e o protagonista foi Charles Spurgeon, conhecido como “o príncipe dos pregadores”, que se posicionou com veemência contra uma perigosa distorção doutrinária que ameaçava o coração do evangelho: o hipercalvinismo.
Spurgeon, embora um confesso calvinista, não hesitou em denunciar com lágrimas e indignação a maneira como alguns levaram os ensinos da soberania de Deus a extremos que beiravam a blasfêmia. Para ele, os hipercalvinistas, ao negarem a responsabilidade humana, minimizarem os convites universais do evangelho e, em casos extremos, apresentarem Deus como autor do pecado, não estavam defendendo a verdade, mas deturpando o caráter do próprio Deus.
Este artigo visa apresentar, em profundidade, o desabafo de Spurgeon — um clamor teológico e pastoral — e refletir sobre os perigos do hipercalvinismo e do antinomianismo, destacando a relevância de se pregar todo o conselho de Deus (Atos 20.27), com equilíbrio, humildade e reverência.
1. Definindo os termos: Hipercalvinismo e Antinomianismo
Antes de adentrarmos nas preocupações de Spurgeon, é necessário esclarecer os termos envolvidos.
Hipercalvinismo é uma doutrina que leva os princípios da teologia calvinista a um extremo lógico não bíblico. É caracterizado por negar que os homens tenham responsabilidade de responder ao evangelho, por rejeitar os chamados universais ao arrependimento e à fé e, em alguns casos, por sugerir que Deus é o autor do pecado. Segundo o Dicionário de Teologia (Champlin & Bentes), hipercalvinismo é:
“A doutrina que nega o oferecimento livre do evangelho a todos os homens e enfatiza tanto a soberania de Deus na eleição que chega a excluir a necessidade de pregação evangelística e de apelos ao arrependimento.”
Antinomianismo, por sua vez, é a ideia de que, uma vez salvo, o cristão está completamente livre da lei moral, de modo que não precisa mais se preocupar com os mandamentos de Deus. O Evangelical Dictionary of Theology, organizado por Walter A. Elwell, da Baker Academic, define assim:
“A crença de que os cristãos, por estarem sob a graça, não estão mais obrigados a obedecer à lei moral, frequentemente resultando em permissividade e negligência com a santidade.”
Ambas as doutrinas, ainda que diferentes em conteúdo, compartilham a mesma raiz de erro: a mutilação do evangelho. E é contra esse mal que Spurgeon ergue sua voz profética.
2. A mutilação do evangelho: uma verdade parcial torna-se um erro mortal
Spurgeon inicia seu desabafo com um diagnóstico severo, mas profundamente realista:
“Quantos danos têm sido causados às almas dos homens por homens que só têm pregado uma parte, e não todo o conselho de Deus!”
O evangelho, quando reduzido a um único ponto doutrinário — seja ele a soberania de Deus ou a liberdade humana —, torna-se deformado e espiritualmente tóxico. Para Spurgeon, os hipercalvinistas estavam cometendo o erro clássico de enfatizar uma verdade bíblica isoladamente, sem considerar o conjunto da revelação. Ao pregar apenas a eleição divina, sem o chamado ao arrependimento e fé, esses pregadores estavam traindo a missão do evangelho.
Spurgeon sabia que a soberania de Deus é uma verdade bíblica inegociável, mas também cria que o ser humano é responsável por rejeitar ou acolher o evangelho. Ambas as verdades, embora misteriosas, coexistem nas Escrituras e devem ser pregadas com equilíbrio. Ignorar uma em detrimento da outra é, como ele disse, causar deformidade espiritual tanto no crente quanto na igreja.
3. O perigo real: corações cauterizados e consciências mortas
Spurgeon relata com pesar:
“Meu coração sangra por muitas famílias sobre as quais a doutrina antinomiana conquistou domínio... cujas consciências foram cauterizadas com ferro quente pela fatal pregação a que deram atenção.”
Esse é o impacto direto do hipercalvinismo quando associado ao antinomianismo: ele mata a consciência. Os pecadores, em vez de ouvirem que devem se arrepender e crer, são instruídos a esperar por uma regeneração irresistível e soberana que talvez nunca venha. O resultado? Letargia espiritual, cinismo religioso e, em muitos casos, endurecimento do coração.
Spurgeon denuncia ministros que, dizendo-se pregadores do evangelho, afirmam que Deus odeia alguns homens “infinita e imutavelmente por nenhuma outra razão senão simplesmente porque decide fazê-lo.” Tais afirmações, além de destituídas de respaldo bíblico, mancham a imagem de um Deus justo, amoroso e longânimo. Elas retratam um Deus arbitrário, caprichoso e injusto — algo que nem mesmo os reformadores do século XVI ousaram afirmar.
4. A distorção do caráter de Deus: o Deus do hipercalvinismo não é o Deus da Bíblia
A acusação de que Deus seria o autor do pecado é talvez a mais grave consequência lógica do hipercalvinismo. Ao enfatizar uma soberania sem limites e divorciada de santidade, justiça e bondade, alguns hipercalvinistas chegaram a atribuir a origem do mal diretamente a Deus.
Contudo, a Escritura é clara:
“Deus é luz, e nele não há treva nenhuma” (1Jo 1.5).
“Quando tentado, ninguém deve dizer: ‘Estou sendo tentado por Deus’; pois Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta” (Tg 1.13).
Spurgeon, ao combater essa teologia, não estava apenas defendendo uma tese doutrinária, mas o próprio caráter do Deus que amava. Para ele, o hipercalvinismo era uma afronta à santidade de Deus, uma negação de Sua justiça e uma traição à clareza do evangelho bíblico.
5. O colapso da vida cristã prática: fanatismo, legalismo e letargia
Outro fruto amargo do hipercalvinismo é o impacto devastador na vida cristã prática. Spurgeon observa como jovens crentes, outrora fervorosos e amorosos, ao adotarem uma teologia extremada, tornaram-se fanáticos, críticos, ásperos e legalistas. A obsessão por uma doutrina isolada destrói a beleza do evangelho vivido, e o amor é substituído pela frieza doutrinária.
Spurgeon também denuncia que, quando se ignora a doutrina e se foca apenas no aspecto prático, o resultado é o legalismo. Como os gálatas, os cristãos passam a agir como se fossem salvos pelas obras. Assim, a falta de equilíbrio teológico conduz tanto ao laxismo quanto ao rigorismo — ambos igualmente perigosos.
6. A urgência da pregação plena: “todo o conselho de Deus”
A solução para esse problema é clara: pregar todo o evangelho. Spurgeon insiste que:
“O crente... só será mantido puro, santo, caridoso, semelhante a Cristo, por uma pregação da verdade completa, como se vê em Jesus.”
Isso inclui a soberania de Deus, sim, mas também a responsabilidade do homem. A eleição divina, sim, mas também os convites universais do evangelho. O mistério da predestinação, sim, mas também o chamado à fé. Como pregador, Spurgeon desejava honrar a Palavra como ela é, sem mutilá-la para torná-la mais palatável ou sistematicamente coerente. Ele sabia que Deus honra a fidelidade, não a criatividade humana.
Conclusão: O grito de Spurgeon ainda ecoa
Apesar de ser um convicto calvinista e defensor dos cinco pontos do calvinismo, chegando até mesmo, em alguns momentos, a afirmar equivocadamente que “o calvinismo é o evangelho”, Charles Spurgeon demonstrou clareza e discernimento ao perceber que muitos calvinistas estavam levando sua teologia longe demais. De um calvinismo moderado, passível de debate e reflexão bíblica, passou-se para uma forma extrema que beirava a heresia. Contra esse abuso — e não contra o calvinismo em si — Spurgeon se levantou com firmeza. Ele se opôs ao hipercalvinismo, à negação da responsabilidade humana, à distorção do caráter de Deus e à ideia perversa de que o Senhor seria o autor do pecado. Sua crítica foi uma tentativa de preservar a integridade do evangelho e da pregação livre e sincera a todos os pecadores.
Seu desabafo registrado por Ian H. Murray não é apenas um lamento do passado, mas um alerta para os nossos dias. O evangelho bíblico não é um quebra-cabeça lógico a ser resolvido, mas a gloriosa revelação de um Deus que é soberano, justo, santo, amoroso e que convida todos os homens em todos os lugares ao arrependimento (At 17.30).
O hipercalvinismo, ao negar a responsabilidade humana, mutila o evangelho, distorce o caráter de Deus e desfigura a vida cristã. E isso não pode ser ignorado. Que preguemos, com fidelidade e temor, todo o conselho de Deus, como Spurgeon fez. Que não tenhamos medo do mistério, mas temamos a mutilação da verdade. E que jamais troquemos a glória de um Deus justo e amoroso por um ídolo criado à imagem de sistemas teológicos distorcidos.
Bibliografia utilizada e sugerida
Champlin, R. N.; Bentes, J. M. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Hagnos.
Elwell, Walter A. (Org.). Evangelical Dictionary of Theology. 2ª ed. Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2001.
Murray, Ian H. Spurgeon versus Hipercalvinismo: A Batalha pela Pregação do Evangelho. São Paulo: PES, 2006.

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