CAPÍTULO 5
ROSES
Kenneth Keathley
Você acredita que Deus criou o homem e arbitrariamente, soberanamente – que é a mesma coisa – criou esse homem sem nenhuma outra intenção a não ser a de condená-lo? O fez, e ainda, por nenhuma outra razão a não ser a de destruí-lo para sempre? Ora, se você pode crer nisso eu tenho pena de você, é tudo o que posso dizer: você é digno de pena, de você poder pensar tão mesquinhamente sobre Deus, cuja misericórdia dura para sempre.
C.H. Spurgeon[1]
"O Southeastern Baptist Theological Seminary, onde leciono, tem uma confissão de fé chamada de Princípios Abstratos. Escrita originalmente para o Southern Seminary por Basil Manly Jr., o artigo quatro dos Abstratos declara, “Deus, desde toda a eternidade, decreta ou permite todas as coisas que acontecem e sustenta, dirige e governa todas as criaturas e eventos; ainda assim, não é em nenhum sentido o autor ou aprovador do pecado, nem destrói o livre arbítrio e a responsabilidade das criaturas inteligentes.”
O artigo parece auto contraditório. Ele declara que Deus gerencia todas as coisas e ainda, ao mesmo tempo, Deus apenas permite o mal, Ele não é “de nenhuma maneira” a origem do pecado e Suas escolhas não negam o Livre Arbítrio humano. Um modelo da soberania divina e responsabilidade humana que tenta reconciliar todas as declarações do artigo acima é chamado de Molinismo. Este capítulo apresenta o entendimento Molinista da eleição e defende que ele provê uma alternativa para o crente que está convencido que a eleição é uma escolha soberana e graciosa de Deus, mas não está convencido que isso implica em aceitar os cinco pontos do Calvinismo.
Duas Doutrinas Essenciais: Soberania e Permissão
O Deus da Bíblia criou o mundo do nada – creatio ex nihilo – e esta verdade implica dois corolários: soberania e permissão. A soberania de Deus é Seu senhorio sobre a criação. A soberania divina significa que Deus governa, e sim, controla todas as coisas.
Em sua elaboração dos Princípios Abstratos, Manly foi cuidadoso ao incluir o conceito de permissão. Permissão é a decisão de Deus de permitir algo, além de Si próprio, de existir. A simples existência parece ser o que Deus deu a maior parte da criação, porque a maior parte de seu imenso universo consiste simplesmente de materiais físicos que obedecem as leis naturais. Ele deu um nível de liberdade, dentro de alguns limites, a certos agentes – a saber, anjos e os seres humanos. Deus não nos garantiu independência absoluta ou autonomia completa. Usar a palavra permissão destaca o ponto que nossa liberdade é uma liberdade derivada. Ele nos deu a habilidade de escolher e com essa habilidade veio a responsabilidade moral para essas escolhas. O conceito de permissão significa que embora Deus controle todas as coisas, Ele não causa todas as coisas.[2] Quanta liberdade Ele nos permitiu? Liberdade suficiente para se rebelar.
Soberania e Permissão e como elas se relacionam à Predestinação
A meta difícil diante de nós é alcançar um entendimento balanceado tanto da soberania quanto da permissão, particularmente em como ela se relaciona à predestinação. Os que enfatizam a soberania tendem a ser Calvinistas; os que enfatizam a permissão tendem a ser Arminianos. Os extremos existem em ambos os lados das fronteiras da doutrina Cristã. Se alguém quer ver a soberania divina ser enfatizada ao ponto do fatalismo, ele não precisa olhar em nenhum outro lugar a não ser no Islã. A palavra Islã significa “submeter-se” e a meta do Muçulmano devoto é se submeter à vontade irresistível de Allah.
Oposto do Islã em outro extremo está a teologia do processo. No pensamento da teologia do processo Deus está mudando e evoluindo junto com o mundo e precisa do mundo tanto quanto o mundo precisa dele. De acordo com o teólogo do processo, o mal acontece porque Deus não é capaz de pará-lo, e o mundo está literalmente fora de controle. Localizada entre os extremos do islã e da teologia do processo está a verdade bíblica de que Deus governa soberanamente sobre todas as criaturas que Ele permitiu que tenham uma quantidade relativa de liberdade.
As Similaridades entre o Calvinismo Infralapsário e o Molinismo
Dentro das crenças Cristãs ortodoxas, duas abordagens tentam conscientemente fazer justiça às duas doutrinas bíblicas gêmeas, a soberania divina e a permissão divina, ao afirmarem ambas simultaneamente. São as abordagens do Calvinismo Infralapsário e do Molinismo. Ambas afirmam que a soberania de Deus é meticulosa e abrangente. Ambas afirmam o conceito de permissão e concordam que Deus não causou a queda, nem Ele é a causa do mal, mas Ele permite o pecado. O problema real é, como sempre, o problema do mal. Como o mal se relaciona com a questão da eleição, a questão é como os seres humanos passaram a ser vistos na mente eterna de Deus como pecadores em primeiro lugar. O debate sobre a predestinação é sobre o papel que a permissão desempenha no decreto de Deus.
Alguns Cristãos tem um problema com a doutrina da eleição em si. As Escrituras ensinam e nossa experiência confirma que se Deus não tivesse nos escolhido nós não teríamos O escolhido (João 15:16). De acordo com Paulo, Deus nos escolheu “nEle [em Cristo] antes da fundação do mundo” (Ef. 1:4), e Pedro identifica os crentes como aqueles que são “eleitos [Grego eklektos] segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo” (I Pedro 1:2). Eleição é um ensino claro da Escritura (cf. Rm 8:29).
A questão do reprovado levanta um problema. A reprovação é a decisão de Deus de rejeitar ou passar por cima de certos indivíduos. Se Deus rejeita o reprovado por causa do seu pecado e descrença, então a reprovação está baseada na justiça de Deus, e Sua decisão não levanta nenhum dilema moral. Mas isso também significaria que alguns aspectos do decreto de Deus foram condicionais ao invés de incondicionais e que de certa forma as escolhas livres das criaturas moralmente responsáveis afetaram as decisões eternas de Deus.
Alguns Calvinistas (seguindo seu homônimo João Calvino) não podem aceitar que existe qualquer condicionalidade nos decretos de Deus, de modo que eles se sacrificam e dispensam a permissão também.[3] Eles abraçam a dupla predestinação, em que Deus escolhe alguns e rejeita outros e então, subsequentemente, decretou a queda a fim de fazer acontecer. Como vimos no capítulo 2, àqueles que sustentam esta posição são chamados de supralapsários, porque eles entendem que o decreto ocorre logicamente antes (supra) ao decreto de permitir a queda (lapsus), daí a palavra supralapsarianismo.
A maioria dos Calvinistas se choca com esta abordagem. A teologia reformada geralmente ensina que Deus primeiro decretou permitir a queda e então, da humanidade caída, escolheu certos indivíduos para a salvação por razões conhecidas apenas por Ele. Esta abordagem é chamada de infralapsarianismo (infra significa “depois”), porque nesta visão, a escolha eletiva de Deus ocorre logicamente após Ele ter decidido permitir a queda.
O conceito crucial para o modelo Calvinista infralapsário é a noção de permissão. Deus não causou a queda; ele a permitiu. Deus não predestinou o reprovado ao inferno; Ele permite que o descrente siga o seu caminho. A permissão é problemática para o Calvinista – particularmente para aqueles que defendem o determinismo – porque permissão implica condicionalidade, contingência e vê os humanos estando em algum senso na origem de suas respectivas escolhas. Como percebemos no capítulo sobre depravação radical, Calvinistas como John Feinberg definem a soberania de Deus em termos de determinismo causal, e isso deixa pouco espaço para um entendimento logicamente consistente de permissão.[4] Estou argumentando que o que os Calvinistas querem alcançar no infralapsarianismo, o Molinismo na verdade alcança. O Molinismo combina uma visão elevada da soberania com um entendimento robusto da permissão.
Como veremos, uma característica que distingue o Molinismo do Arminianismo é a forma que o Molinismo entende a presciência de Deus. O Arminianismo resolve o problema da reprovação ao apresentar a decisão de Deus com respeito aos indivíduos como algo inteiramente passivo. Deus decreta eleger a igreja como um corpo corporativo, e aqueles indivíduos que escolhem a Cristo, são então vistos como eleitos, enquanto aqueles que o rejeitam são reprovados. Neste respeito os Arminianos veem o decreto de Deus como uma mera ratificação das escolhas humanas.[5] Mas a Bíblia apresenta a decisão eletiva de Deus como algo muito mais ativo e decisivo. Diferente do Arminianismo, o Molinismo descreve Deus usando Sua presciência de uma maneira soberana e incondicional.
As duas abordagens Calvinistas da Eleição comparadas com o Molinismo
Supralapsarianismo
Infralapsarianismo
Molinismo
Deus ordena a salvação do eleito e a condenação do reprovado igualmente.
Deus ordena a salvação do eleito, mas apenas permite a condenação do reprovado.
Deus ordena a salvação do eleito, mas apenas permite a condenação do reprovado.
O conceito de permissão é negado.
Admite uma visão inconsistente e incoerente de permissão.
É capaz de manter uma visão consistente de permissão.
O Supralapsarianismo de Calvino: O conceito de permissão rejeitado
Calvino abordou a questão da predestinação com a premissa que “a vontade de Deus é a causa chefe e principal de todas as coisas”,[6] uma suposição que deixa pouco ou nenhum espaço para permissão. Alguns tentam argumentar que o sucessor de Calvino, Theodore Beza, transformou os ensinos de Calvino no supralapsarianismo; mas a obra de Calvino sobre o assunto, um livro chamado Concerning the Eternal Predestination of God, revela que Calvino defendeu a dupla predestinação apenas como firmemente defendeu seu protegido.[7] A decisão de Deus de eleger e reprovar no supralapsarianismo é primária. Essencial ao entendimento do supralapsarianismo é a distinção que ele faz entre reprovação e condenação.[8] Reprovação é a rejeição de Deus de um indivíduo; condenação é o julgamento de Deus sobre essa pessoa pelos seus pecados. Neste paradigma, Deus não rejeita o reprovado porque ele é um pecador; é ao contrário. O reprovado se torna um pecador porque Deus o rejeitou. Deus rejeitou certos indivíduos e então decretou a queda a fim de efetivar Seu desfavor em relação a eles. Calvino deixou isto claro quando ele declarou que “a causa mais elevada” da reprovação não é o pecado, mas “o prazer puro e simples de Deus”.[9]
Se o decreto de Deus da dupla predestinação é primário, então seu componente da eleição e reprovação tem supremacia igual, um ponto afirmado repetidamente por supralapsários modernos como Cornelius Van Til, Herman Hoeksema e mais recentemente Robert Reymond.[10] O relacionamento de Deus com ambas as classes de indivíduos é simétrica. Ele rejeitou o reprovado da mesma forma que escolheu o eleito.[11]
Como Bruce Ware, um Calvinista infralapsário destaca, a graça não desempenha nenhum papel no entendimento supralapsário do duplo decreto inicial.[12] O motivo é porque quando Deus decidiu quem Ele escolheria e quem Ele rejeitaria, os seres humanos não eram pecadores em necessidade de graça ou merecedores de julgamento. A graça não entrou logicamente no quadro até depois Deus ter determinado resgatar Seus escolhidos da queda. Este é o motivo pelo qual alguns supralapsários tais como David Engelsma não hesitar em falar da atitude de Deus com respeito ao não eleito como aquele que é odiado eternamente.[13] No supralapsarianismo, a graça soberana dá lugar à mera soberania.
Calvino não deixava espaço para a permissão. Calvino ridicularizou a noção de permissão quando ele afirmou:
É fácil concluir quão bobo e frágil é o apoio da justiça divina pela sugestão que o mal surge, não pela Sua vontade, mas meramente por Sua permissão. Claro, na medida em que são maus...eu admito que eles não estão agradando a Deus. Mas é um refúgio completamente frívolo dizer que Deus futilmente os permite, quando a Escritura O mostra não apenas os desejando, mas sendo o autor deles.[14]
Logo, Calvino faz a afirmação assombrosa de que Deus é o próprio “autor” do pecado, uma afirmação que os Calvinistas posteriores rejeitam.
Infralapsarianismo: A Tentativa de Combinar o Calvinismo com a Permissão
Embora Calvino e Beza tenham advogado o supralapsarianismo, nenhum Credo ou Confissão Reformada maior os seguiu. A razão é óbvia: o supralapsarianismo coloca a origem do pecado na conta de Deus; como os Canons de Dort declaram, a noção de que Deus é o autor do pecado de qualquer maneira, é “em absoluto”, “um pensamento blásfemo”.[15] A Confissão de Westminster faz uma declaração similar.[16]
Nos dias de Calvino, um médico em Genebra chamado Bolsec, criticou os ensinos de Calvino sobre a predestinação em razão de que os ensinos de Calvino impugnavam o caráter de Deus. Bolsec foi preso, condenado, e banido de Genebra; e Calvino buscou apoio de outros Reformadores em outras cidades suíças a favor de seu supralapsarianismo. Ele pareceu ter ficado genuínamente surpreso quando Reformadores como Heinrich Bullinger discordou dele e fez uma defesa do infralapsarianismo.[17] Nos debates subsequentes entre os partidos infra e supralapsários, os credos e confissões revelam que as igrejas reformadas escolheram Bullinger ao invés de Calvino, universalmente. O grande pregador Charles Spurgeon expressou a repulsa que a maioria dos Calvinistas modernos sentem com respsito ao supralapsarianismo, quando ele pergunta e depois declarou, “Você acredita que Deus criou o homem e arbitrariamente, soberanamente – que é a mesma coisa – criou esse homem sem nenhuma outra intenção a não ser a de condená-lo? O fez, e ainda, por nenhuma outra razão a não ser a de destruí-lo para sempre? Ora, se você pode crer nisso eu tenho pena de você, é tudo o que posso dizer: você é digno de pena, de você poder pensar tão mesquinhamente sobre Deus, cuja misericórdia dura para sempre.”[18]
O infralapsarianismo se recusa a reconhecer as implicações lógicas da dupla predestinação. O sistema infralapsário argumenta que em alguns aspectos, o decreto soberano de Deus é condicional. E ainda, este modelo também argumenta que no processo de trazer o decreto à realização, alguns aspectos do relacionamento de Deus com os eventos – particulamente ao mal e aos eventos pecaminosos – são permissivos.
Bruce Ware, defendendo o infralapsarianismo, afirmou:
Me parece que a tensão no Calvinismo que tem sido relutante em abraçar a “vontade permissiva de Deus”, simplesmente rejeita uma das ferramentas conceituais muito necessária para explicar a inocência moral de Deus com respeito ao mal. Certamente é preciso mais do que apenas este modo da atividade divina. Mas eu não vejo como podemos prosseguir se a soberania de Deus que lida em questões de bem e mal são, de fato, simétricas.[19]
Em outras palavras, a fim de proteger Deus da acusação de ser o autor do mal, devemos abraçar a noção de permissão.
Louis Berkhof concordou com Ware. Ele destacou que quando a Bíblia apresenta Deus rejeitando um homem como o Rei Saul ou um povo como o Israel descrente, está claro que Deus os rejeitou baseado na rejeição anterior deles de Deus.[20] Portanto, a eleição é incondicional, mas a reprovação é condicional. Deus ordena ativamente a salvação do eleito, mas apenas permite a condenação do reprovado.
O infralapsarianismo percebe Deus tendo uma relação assimétrica com respeito à eleição e reprovação.[21] Deus primeiro permite a queda de toda a humanidade. Então, vendo toda a humanidade como condenados justamente em seus pecados, Deus ordena certo número incondicionalmente: estes são os eleitos. Deus permite que a humanidade caia; mas Ele não causa essa queda. O infralapsarianismo incorpora a história no decreto eterno. Mesmo o supralapsário Cornelius Van Til afirmou, “Desde a eternidade, Deus rejeitou os homens por causa dos pecados que eles cometeriam como seres históricos.”[22] O decreto da reprovação na eternidade foi condicionado pelo que ocorreria no tempo.
Problemas com a posição Infralapsária
O infralapsarianismo depende do conceito de permissão, mas reconciliar a permissão com a visão tradicional Reformada da soberania é difícil. Calvino afirmou que “a vontade de Deus é a causa chefe e principal de todas as coisas.”[23] Se todos os eventos são casualmente determinados, que espaço existe para a permissão? Alguns Reformadores infralapsários falam de uma “permissão eficaz” ou de uma “permissão determinativa”. Por exemplo, Jerome Zanchius, um dos primeiros advogados do infralapsarianismo, declarou que, “Deus permissivamente endurece o reprovado com uma permissão eficaz”.[24] Ver o termo “permissão eficaz” como algo que não seja um oxymoron é um desafio.
Abraçar genuinamente o conceito de permissão requereria do infralapsário o abandono de alguns princípios chaves da teologia Reformada. Berkhof reconheceu isso quando ele advertiu, “O infralapsarianismo quer realmente explicar a reprovação como um ato da justiça de Deus. E é inclinado a negar, implícita ou explícitamente que é um ato do mero prazer de Deus. Isto faz realmente o decreto da reprovação um decreto condicional e leva para dentro do campo Arminiano”.[25] Os infralapsários tem uma escolha. Se o decreto da reprovação é condiconal, ele não está de acordo com o simples prazer de Deus. Se é incondicional, então não está de acordo com a permissão de Deus. O infralapsarianismo quer ensinar que Deus condena o reprovado em resposta aos seus pecados, mas isso abandonaria a visão Reformada clássica da soberania de Deus, que é o motivo pelo qual Calvino rejeitou o conceito de permissão como inaceitável.
Segundo, muitos Calvinistas admitem, o sistema infralapsário é racionalmente inconsistente. Paul Jewett afirmou que a falácia racional repousa no coração da posição infralapsária.[26] Ele assemelha o infralapsarianismo a um pendulo que balança pra lá e pra cá entre a posição da presciência simples dos Arminianos e a preordenação pura dos supralapsários. “E no fim, parece, não existe nenhuma posição consistente entre a presciência simples da queda, que é o Arminianismo, e a preordenação da queda, que (por implicação, pelo menos) é supralapsária. Por esta razão, o pendulo do argumento infralapsário balança uma hora pra um lado e em outro momento pra outro”.[27]
Terceiro, o conceito de permissão como apresentado no sistema infralapsário não resolve nada se a reprovação é ainda o resultado do “beneplácito de Deus”. Os Canons do Sínodo de Dort afirmam, “Não todos, mas apenas alguns, Ele elegeu, enquanto outros foram obliterados no decreto eterno; a quem Deus, de seu beneplácito, decretou deixar na miséria comum”.[28] Então, mesmo o sistema infralapsário apresentado pelo Sínodo de Dort, a reprovação não é o resultado do pecado, mas do beneplácito de Deus.
Supralapsários como David Engelsma criticam o infralapsarianismo por sua incoerência:
Se a reprovação é o decreto de não dar fé a um homem, é patentemente falso dizer que a descrença é a causa da reprovação. Seria o mesmo que dizer que minha decisão de não dar um trocado a um mendigo é devido o mendigo não ter um trocado. Que a reprovação é um decreto incondicional é também claro do fato que se a descrença fosse a causa da reprovação, todos os homens teriam sido reprovados, e não teriam sido eleitos, pois todos os homens são igualmente descrentes e desobedientes.[29]
Engelsma está destacando que se o pecado é a base da reprovação, logo ninguém pode ser eleito, desde que todos são pecadores.
Em última análise, o infralapsarianismo ensina que a reprovação é um tanto uma parte dos decretos de Deus como é a eleição. O infralapsarianismo e o supralapsarianismo são simplesmente nuances da mesma abordagem, tendo em vista ambos começarem com o decreto eterno de Deus e rejeitarem a noção de que Deus garantiria (ou mesmo que poderia garantir) qualquer tipo de escolha libertária às criaturas responsáveis.
Conclusões entre os Calvinistas concernente o infralapsarianismo
Muitos Calvinistas supra recusam a posição infra como sendo um Arminianismo incipiente (não que possa ajudar, mas podemos sorrir sobre a acusação de Robert Raymond de John Gerstner ser um Arminiano),[30] e inúmeros infralapsários, como Louis Berkhof, admitem este ponto.[31] Alguns Calvinistas se desesperam completamente. G. C. Berkouwer chamou a exploração dos decretos um caso de “transgressão teológica”. John Feinberg concluiu que “toda a discussão é equivocada” e que “esta questão não deveria ser perguntada”. John Frame defendeu o agnosticismo.[32] Os vereditos de Paul Jewett e Tom Schereiner são uníssonos. Jewett afirmou, “Em todo caso, quando tudo é dito e feito, o problema da reprovação permanece sem solução e, pareceria insolúvel”, enquanto Schereiner concluiu, “O escândalo do sistema Calvinista é que em última análise, os problemas lógicos colocados não podem ser completamente respondidos”.[33]
Neste ponto, muitos Calvinistas infralapsários apelam ao mistério, mas o que estamos tratando aqui não é um mistério, mas uma contradição. Existe diferença entre um paradoxo epistêmico e um paradoxo lógico.[34] Um paradoxo epistêmico resulta de informação insuficiente, mas um paradoxo lógico indica um erro ou nas pressuposições iniciais ou em seu processo de raciocínio. O Calvinista decretal não pode aceitar suas próprias conclusões. Isto significa que algo está errado em algum lugar.
Esta situação não é como contemplar a Trindade ou a encarnação, onde se encontram as verdades transcendentes em que não se pode ir além. O dilema para o Calvinista é que ele não pode levar suas afirmações iniciais às suas conclusões lógicas. Como percebido no capítulo sobre a depravação radical, John Gerstner advertiu seus colegas Calvinistas que em suas formulações do relacionamento do decreto de Deus com o pecado, a teologia Reformada “flutua” sobre “o abismo da blasfêmia”[35] Para receber seus créditos, os Calvinistas em geral não mergulham. Todos esses problemas indicam que é questionável se se deve usar a doutrina da eleição como uma crença de controle quando as questões consideradas são como as da extenção da expiação.
MOLINISMO: AFIRMA SIMULTANEAMENTE SOBERANIA E PERMISSÃO
Vamos voltar às nossas duas crenças controle. Elas não deixam os Arminianos felizes, mas vamos afirmar que Deus controla soberanamente todas as coisas.[36] O Calvinista pode ficar descontente, mas vamos entender permissão da forma que o dicionário define: “permissão é dar uma oportunidade ou uma possibilidade a outra.” Esta é a maneira em que permissão é normalmente entendida. Permissão implica que Deus concedeu pelo menos algum tipo de escolha libertária aos agentes morais causais que Ele criou.[37]
O Molinismo afirma simultaneamente a soberania divina meticulosa e a liberdade humana genuína. Como isso acontece? Em resumo, o Molinismo afirma que Deus é capaz de exercitar Sua soberania essencialmente por Sua onisciência. Desta forma Deus controla todas as coisas, mas não é a causa determinativa de todas as coisas. Como vimos no capítulo 1, à característica distintiva do Molinismo é sua alegação de que o conhecimento de Deus de todas as coisas tem três camadas ou momentos lógicos. O Molinismo é particularmente notado por sua visão de que Deus pode saber com certeza, infalivelmente as escolhas das criaturas livres usando seu conhecimento médio.
Os Três Momentos no Molinismo Aplicados à Eleição
A teologia decretal (ou seja, supra e infralapsarianismo) tenta discernir a ordem lógica dos decretos de Deus. O Molinismo, por outro lado, postula que existe apenas um decreto (um ponto que tem apoio escriturístico e que muitos estudiosos Reformados reconhecem)[38] mas tentam discernir a ordem lógica do conhecimento de Deus. Ao invés de tentar explorar as “camadas” do decreto de Deus, o Molinismo explora as “camadas” da onisciência de Deus. O Calvinismo decretal compreende momentos lógicos na vontade de Deus; o Molinismo compreende momentos lógicos no conhecimento de Deus.[39]
Discernir momentos no conhecimento de Deus não é exclusivo ao Molinismo. Teólogos Reformados geralmente concordam com os Molinistas que o conhecimento de Deus pode ser entendido em termos de momentos ou aspectos. Por exemplo, Louis Berkhof reconhece dois momentos da onisciência divina: o conhecimento natural de Deus e Seu conhecimento livre.[40] Por Sua natureza, Deus conhece todas as coisas, de modo que este aspecto de Seu conhecimento é intitulado de conhecimento natural. Este conhecimento natural contém todas as verdades que são verdades necessárias no mundo atual (por exemplo, “um triângulo é um objeto de três lados” ou “Deus não pode morrer”) e todas as verdades necessárias em todos os mundos possíveis (por exemplo, “como o mundo seria se eu ou você não tivesse nascido”). Logo, o conhecimento natural de Deus contém todas as verdades necessárias.
Quando consideramos o conhecimento natural de Deus das verdades possíveis ou hipotéticas, as coisas ficam um pouco complicadas. Lembre-se que um estado possível de coisas, ou seja, algo que é verdade hipoteticamente é chamado de contrafactual, um estado de coisas que não se obtém. Uma contrafactual é uma afirmação que tem teor de verdade, mas é contrária aos fatos.[41] A Bíblia reconhece as contrafactuais, e os escritores bíblicos as usam com frequência. Por exemplo, Paulo disse que “se Cristo não houvesse ressuscitado...ainda estaríamos em nossos pecados” (I Co 15:17). Este é um estado contrafactual de coisas que gloriosamente não se obtém.[42] Os Molinistas intitulam estes cenários complexos feitos de contrafactuais de mundos possíveis. Apenas contemplando a noção de que Deus conhece não apenas todas as verdades atuais, mas também todas as verdades possíveis, confunde nossas mentes finitas, mas realizar isso não representa nenhum desafio ao nosso Deus onisciente.
Como afirmado antes, Berkhof reconheceu um segundo momento no conhecimento de Deus – Seu conhecimento livre. Ele definiu o conhecimento livre de Deus como “o conhecimento de tudo sobre este mundo em particular”. Entre todos os mundos possíveis que Ele poderia ter criado, Deus escolheu livremente este. Este mundo é o produto da livre escolha de Deus, que é o motivo pelo qual Seu conhecimento deste mundo ser chamado de conhecimento livre.
Teólogos reformados (tais como Berkhof) reconheceram que o conhecimento de Deus tem pelo menos dois momentos: Seu conhecimento natural e Seu conhecimento livre. Molinistas também concordariam com a afirmação de Berkhof de que “o decreto de Deus mantém uma relação muito intima com o conhecimento divino”.[43] Isto é, Deus realiza Sua vontade soberana primeiramente ao usar Sua onisciência. E sobre todas as escolhas possíveis das criaturas genuinamente livres? Onde estão localizadas estas contrafactuais na esfera do conhecimento de Deus? Aqui é onde o conceito Molinista do conhecimento médio entra em cena.
Como Thomas Flint explicou, o conhecimento de Deus das contrafactuais das criaturas livres deve ser distinto de Seu conhecimento natural porque as contrafactuais são contingencias que ocorreriam devido às escolhas das criaturas livres. Nem estas contrafactuais podem pertencer ao conhecimento livre de Deus desde que são apenas hipotéticas e não reais. Molinistas argumentam que Deus possui um terceiro tipo de conhecimento, localizado “entre” o conhecimento natural de Deus e Seu conhecimento livre (daí o título conhecimento médio).[44] O conhecimento natural divino é preenchido com verdades que são verdades devido à natureza de Deus e o conhecimento livre de Deus é preenchido com o que é verdade devido à vontade de Deus, mas o conhecimento médio é preenchido de verdades em que as decisões das criaturas livres são as criadoras dessas verdades (mesmo embora Deus conheça essas decisões de maneira inata).[45] Isto é o que implica um conceito robusto de permissão.
Armado com estas três ferramentas conceituais, o Molinismo defende que Deus realiza sua vontade soberana por meio da Sua onisciência. Primeiro, Deus conhece todas as coisas que poderiam acontecer. Este primeiro momento é Seu conhecimento natural, onde Deus conhece todas as coisas devido Sua natureza onisciente. Segundo, de um conjunto infinito de possibilidades, Deus também conhece quais cenários resultariam no caso das pessoas responderem livremente da forma que Ele deseja. Este momento crucial do conhecimento está entre o primeiro e o terceiro momento, daí o termo conhecimento médio. De um repertório de opções disponíveis providos por Seu conhecimento médio, Deus escolhe, livre e soberanamente qual deles Ele fará acontecer. Isto resulta no terceiro momento do conhecimento de Deus, que é Sua presciência do que ocorrerá com certeza.[46] O terceiro momento é o conhecimento livre de Deus porque ele é determinado por Sua livre e soberana escolha.
Ao utilizar essas três fases do conhecimento, Deus predestina todos os eventos, mas não de uma forma a violar a liberdade e a escolha humana genuína. Deus “põe a mesa” meticulosamente de modo que os humanos escolhem livremente o que Ele havia predeterminado. Lembre-se do exemplo da negação de Pedro. O Senhor previu que Pedro O negaria e pelo uso do Seu conhecimento médio ordenou o cenário com certeza infalível do que Pedro faria. No entanto, Deus não fez ou causou Pedro a fazer o que ele fez.
As Vantagens da Abordagem Molinista
A abordagem Molinista tem muitas vantagens tanto sobre o Calvinismo quanto sobre o Arminianismo.
Primeiro, o Molinismo defende o desejo genuíno de Deus para que todos sejam salvos, de uma forma que é problemática para o Calvinismo. Deus tem uma vontade salvífica universal embora nem todos, talvez nem mesmo a maioria, se arrependerão e crerão no Evangelho. Vimos no capítulo 3 que os Calvinistas têm lutado com esta questão. A maioria ou tem negado o desejo de Deus para que todos sejam salvos, ou tem afirmado que Deus tem uma vontade secreta que triunfa sobre Sua vontade revelada.
O Molinismo se encaixa bem com o ensino bíblico de que Deus ama universalmente o mundo todo (João 3:16) e ainda que Cristo tem um amor particular pela igreja (Efésios 5:25). William Lane Craig sugere que Deus “escolhe um mundo que tem um equilíbrio ideal entre o número de salvos e de perdidos”.[47] Em outras palavras, Deus criou um mundo com uma proporção máxima do número de salvos com relação aos perdidos. A Bíblia ensina que Deus deseja genuinamente que todos sejam salvos, embora muitos pereçam, mas ainda Sua vontade é feita. O Molinismo aborda melhor este aparente paradoxo.
Uma ilustração pode ser útil aqui. Antes da invasão da Normandia, o General Dwight Eisenhower foi informado por muitos de seus conselheiros que as baixas excederiam os 70%. O preço humano real pago foi terrível, mas felizmente não foi tão alto. Eisenhower deu a ordem para que a invasão prosseguisse, mas ele teria sido rápido em dizer que ele desejava genuínamente que nenhum de seus homens perecesse. O Molinismo entende a vontade de Deus para que todos sejam salvos operando de maneira similar, embora reconhecemos que todas as analogias eventualmente não são perfeitas.
Para tentar explicar a visão Calvinista do desejo salvífico de Deus, John Piper e Bruce Ware também usaram ilustrações de líderes – George Washington e Winston Churchill, respectivamente – que são forçados a tomar decisões difíceis também.[48] Suas ilustrações operam contra suas posições porque um componente chave da doutrina Calvinista da Eleição é que o reprovado é obliterado por causa do “beneplácito de Deus”. O Molinismo se encaixa melhor na descrição bíblica das duas vontades de Deus (ou os dois aspectos da vontade de Deus) – Sua vontade antecedente e consequente. O Molinista pode afirmar sem reservas que Deus está “não querendo que alguns se percam, senão que todos venham a arrepender-se” (2 Pedro 3:9).
Segundo, o Molinismo provê um modelo melhor para entender como simultaneamente o decreto de Deus para a eleição é incondicional enquanto Sua rejeição do descrente é condicional. A Oniciência e a Presciência de Deus é o calcanhar de Aquiles para a maioria das apresentações Arminianas sobre a eleição. Se Deus tem conhecimento exaustivo de todos os eventos futuros, logo, a eleição condicional não remove realmente a natureza incondicional das decisões de Deus. Se Deus sabe que certo homem irá aceitar livremente o evangelho, enquanto que o irmão desse homem livremente não aceitará, e ainda Deus decide criar ambos assim mesmo, logo, esta é uma determinação incondicional, soberana e misteriosa da parte de Deus.[49]
Alguns Arminianos reconhecem este dilema e optam pelo teísmo aberto como alternativa. No teísmo aberto, Deus não sabe como um indivíduo responderá ao evangelho. Ele cria uma pessoa e espera pelo melhor. O teísta aberto vê Deus como um estatístico trabalhando com as probabilidades, e entende a soberania de Deus como um exercício de gerenciamento de risco.
O Molinismo provê uma resposta muito melhor. Por que o reprovado existe? Por causa da vontade soberana de Deus. Por que ele é reprovado? Por causa de sua própria descrença. Quando Deus faz a escolha soberana de trazer este mundo em particular à existência, Ele tornou certa, mas não causou a destruição de certos indivíduos que rejeitariam as ofertas da graça de Deus. Segundo o Molinismo, nossas escolhas livres determinam como responderíamos em qualquer conjunto de situações, mas Deus decide o conjunto de situações em que efetivamente nos encontramos. Como Craig afirmou, “está sobre Deus se nos encontramos em um mundo em que somos predestinados, mas está sobre nós se somos predestinados no mundo em que nos encontramos”.[50]
Em outras palavras, o paradigma Molinista explica como é possível haver um decreto de eleição sem um decreto correspondente de reprovação, que é de fato o testemunho bíblico. Uma das motivações mais fortes para a posição infralapsária é a convicção de que Deus não ordena o reprovado ao inferno da mesma forma que Ele ordenou o eleito à salvação. O modelo Molinista apresenta uma relação assimétrica entre Deus e as duas classes de pessoas, o eleito e o reprovado, de uma maneira que o infralapsário não pode. Esta é a grande vantagem do Molinismo.
O terceiro ponto é inverso ao prévio: no sistema Molinista, diferente do Arminianismo, Deus é o autor da salvação que elege certos indivíduos ativamente. No Arminianismo, Deus emprega apenas uma presciência passiva (no teísmo aberto Deus não elege nenhum indivíduo em absoluto). Os Molinistas defendem que Deus usa Sua presciência exaustiva de uma maneira ativa e soberana. Deus determina o mundo em que vivemos. Se eu existo, tenho a oportunidade de responder ao evangelho ou sou colocado em um cenário onde seria graciosamente capacitado a crer, são decisões soberanas feitas por Ele. O Molinista afirma que os eleitos são salvos pelo beneplácito de Deus. A diferença distintiva entre Calvinismo e Molinismo é que o Calvinismo vê Deus realizando Sua vontade por meio de seu poder Onipotente, enquanto o Molinismo entende Deus usando Seu conhecimento onisciente.
O quarto ponto expande o terceiro ponto: O Molinismo tem um entendimento mais robusto e escriturístico do papel que a presciência de Deus desempenha na eleição do que no Calvinismo ou no Arminianismo. A Bíblia afirma repetidamente que “Porque os que dantes conheceu também os predestinou” (Romanos 8:29) e que os santos são “Eleitos segundo a presciência de Deus Pai” (1 Pedro 1:2). Os Calvinistas afirmam geralmente que nestes exemplos da presciência de Deus devem ser entendidos como Seu “amor antecipado”. Este parece ser um caso de apelo especial. Os Arminianos defendem que o que é preconhecido por Deus é meramente a fé do crente. O Molinismo rejeita ambas explicações.
No entendimento Calvinista da presciência e predeterminação, o futuro é o produto da vontade de Deus. A visão Calvinista claramente apresenta Deus como soberano, mas Ele também parece ser a causa do pecado. Na formulação Arminiana, Deus olha á frente, em um futuro feito pelas decisões das criaturas livres e então planeja segundo o que vê. O modelo Arminiano enfatiza que Deus é um Pai amável, mas infelizmente Sua vontade não tem nenhuma relação com muita coisa que acontece.
Em contraste, o Molinismo defende que Deus usa Sua presciência ativamente. Entre as muitas possibilidades preenchidas pelas escolhas das criaturas livres, Deus livre e soberanamente decidiu que mundo trazer à existência. Esta visão cabe bem com a afirmação bíblica e simultânea tanto da presciência quanto da predeterminação (Atos 2: 23). Alguns Calvinistas tais como J.I. Packer e D. A. Carson afirmam ambos, mas denominam suas visões de antinomínia ou paradoxos porque eles sabem que suas defesas não podem ser reconciliadas nem com o modelo supra ou infralapsário.[51] O Molinismo é a posição que pode afirmar tanto a presciência quanto a predeterminação confiantemente com consistência lógica.
Em seu livro Hyper-Calvinism and the Call of the Gospel, o Calvinista supralapsário David Engelsma nega que o evangelho é oferecido a todos que o ouvem. Ele defende que ninguém que adere aos cinco pontos do Calvinismo e à reprovação segundo o inescrutável decreto de Deus, pode defender com consistência uma “oferta bem intencionada”. Ele afirma que sua posição não é hypercalvinista, mas é a Calvinista consistente. Eu acredito que Engelsma é um hypercalvinista de fato, mas seu argumento destaca o problema que a teologia Reformada tem ao afirmar que o evangelho é apresentado a todos os ouvintes em boa fé. Por contraste, o Molinismo não tem nenhuma dificuldade em defender que a oferta do evangelho é sincera e bem intencionada. Esta é outra vantagem inegável da visão Molinista.
Quinto, o Molinismo provê um modelo melhor para entender a tensão bíblica entre a soberania divina e a responsabilidade humana. Com os cenários Calvinistas e Arminianos, às vezes se tem a distinta impressão de que classes de passagens inteiras estão sendo forçadas a fim de caber no respectivo sistema teológico ou que algumas passagens não são interpretadas como são explicitadas. Por contraste, quando o Molinista monta seu paradigma teológico, um menor número de textos bíblicos são deixados de fora.
Por exemplo, considere a condenação de Jesus das cidades de Corazin, Betsaida, e Cafarnaum por não se arrependerem, e depois Sua subsequente oração e convite (Mateus 11: 20-28). Desta forma, nosso Senhor trás imediatamente a responsabilidade humana junto com a soberania divina, uma união que ocorre por toda a Escritura.[52] Jesus primeiro condena o impenitente:
“Ai de ti, Corazim! ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em Sidom fossem feitos os prodígios que em vós se fizeram, há muito que se teriam arrependido, com saco e com cinza... E tu, Cafarnaum, que te ergues até ao céu, serás abatida até ao inferno; porque, se em Sodoma tivessem sido feitos os prodígios que em ti se operaram, teria ela permanecido até hoje.” (vv. 21, 23).
Jesus coloca a culpa neles. Eles deviam ter respondido, mas não responderam.
Mas numa virada, que afirma a desimpedida soberania de Deus, Jesus então louva ao Pai:
Naquele tempo, respondendo Jesus, disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim te aprouve. (vv. 25,26).
Ao louvar, Jesus revela que a vontade soberana de Deus ainda está sendo realizada. Apesar das aparências ao contrário, Deus está em controle completo.
Os Arminianos tendem a focar nos versos 20-24 com sua enfase na responsabilidade humana, enquanto os Calvinistas dão proeminência sobre a soberania divina nos versos 25-26. Mas como pode tanto a advertência quanto o louvor de Jesus serem ambas verdadeiras? E se a vontade de Deus está sendo feita de alguma maneira por meio de suas descrenças, como Jesus pode concluir com um convite “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei.” (v. 28)? Como Sua oferta pode ser sincera?
Os Molinistas destacam o uso do conhecimento contrafactual de Jesus para encontrar uma solução. Jesus destaca a culpa das cidades circunvizinhas ao contrastar suas oportunidades com algumas das mais maléficas cidades do Antigo Testamento. Jesus sabe como Sua mensagem teria sido recebida pelos habitantes ímpios de Tiro, Sidom ou mesmo Sodoma, e Ele expressa esse conhecimento de forma contrafactual. Se eles tivessem tido a oportunidade que Israel teve, então teriam se arrependido (vv. 21, 23). Jesus indica conhecimento contrafactual das escolhas que elas teriam feito se tivessem recebido a chance.
Neste ponto pode-se perguntar por que os cidadãos de Sodoma, Tiro, e Sidon não receberam a mesma oportunidade que os habitantes da região da Galiléia receberam. Jesus nos ensina que o plano bom e soberano de Deus (Seu “beneplácito”) necessitou o contrário (vv. 25-27). Pense novamente sobre a ordem de Eisenhower para a invasão da Normandia, pois a analogia se aplica aqui também. Deus deseja a salvação de todos e está realizando a obra da redenção de uma forma máxima, mas isso não garante nem requer que todos tenham uma oportunidade ideal. Ademais, Jesus indica claramente que a responsabilidade pela descrença recai sobre o descrente, com respeito ao nível de oportunidade, pois ele poderia ter se arrependido.
O Molinismo defende que, como os textos indicam, Deus usou Seu conhecimento médio para realizar Sua vontade apesar (e mesmo por meio) da descrença de Israel. Desde que o Molinismo afirma tanto a realidade da agência humana (vv. 20-24), quanto da agência divina (vv. 25-27), ele sustenta que Deus está realizando Sua vontade meticulosamente e que a oferta de Jesus está em boa fé quando Ele convida a todos a virem livremente a Ele. Como em tantas outras passagens, Mateus 11: 20-28 ensina simultaneamente a escolha humana e a soberania divina. O Molinismo está em uma posição singular de não ter que abater uma verdade à submissão para o bem de outra.
O texto bíblico que aborda diretamente o uso de Deus da descrença de Israel é Romanos 9, onde vemos que, mais uma vez, o Molinismo se encaixa bem.[53] A principal questão abordada por Paulo neste capítulo é se o plano de Deus falhou ou não (v. 6, “Não que a palavra de Deus haja faltado”). O Messias veio ao povo de Israel, mas eles o rejeitaram. Mesmo após o dia de Pentecostes, a oferta para receber Jesus como Senhor e Cristo foi feita à nação rebelde. Após a cura do paralítico à Porta Formosa, Simão Pedro proclamou, “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam apagados os vossos pecados, e venham assim os tempos do refrigério pela presença do Senhor, E envie ele a Jesus Cristo, que já dantes vos foi pregado.” (Atos 3:19,20). Extraordinariamente o apóstolo prometeu a Israel que ainda não era tão tarde para receber seu Rei.
A luz de tais ofertas e sua subsequente rejeição, existem perguntas que precisam ser respondidas: a missão de Deus a Israel falhou? O presente da obra de Deus entre os Gentios foi um plano B, um esquema alternativo, um plano paralelo? A igreja foi um premio de consolação? Em Romanos 9, Paulo declara que toda a intenção soberana de Deus foi trabalhar por meio da rebelião de Israel. Antes de ser frustrado, o plano de Deus que Seu Filho morreria pelos pecados do mundo se realizaria gloriosamente.
Paulo expressa sua tristeza pela descrença e condição espiritual de Israel (“Que tenho grande tristeza e contínua dor no meu coração. Porque eu mesmo poderia desejar ser anátema de Cristo, por amor de meus irmãos, que são meus parentes segundo a carne;” Romanos 9: 2,3), e ele orou para que seus compatriotas pudessem ser salvos (“Irmãos, o bom desejo do meu coração e a oração a Deus por Israel é para sua salvação.” Romanos 10:1). Contudo, ele destaca que ser descendência de Abraão nunca foi uma garantia automática de salvação, como Ismael e Esaú ilustram (“Nem por serem descendência de Abraão são todos filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência.” Romanos 9:7). Paulo usa o exemplo de Faraó e Israel no deserto para afirmar que Deus tem o direito soberano de ter misericódia sempre e quando Ele achar melhor (“Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia.” Romanos 9:15).
Neste ponto um objetor protesta que se o que Paulo está dizendo é verdade, então Israel não pode ser culpado por seu pecado porque é impossível resistir a Deus. Paulo responde que um homem não tem mais de retrucar a Deus do que o barro tem a habilidade de resistir ao oleiro (“Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas” Romanos 9:20). Então Paulo faz duas perguntas provocativas:
E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição; Para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou, Os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios?” Romanos 9:22-24
Em outras palavras, e se Deus escolhe usar certas pessoas ímpias para realizar Seu glorioso e grande propósito?
O ponto que Paulo parece estar fazendo é esse: embora Deus deseje a salvação de todos, e embora a oferta de salvação e redenção ter sido oferecida a Israel genuinamente, Deus atualizou um mundo em Israel certamente se rebelaria. (lembre-se da distinção entre certeza e necessidade feita no capítulo 1). De todos os mundos possíveis disponíveis, Deus atualizou este – um mundo em que a descrença de Israel (os “objetos da ira”) seriam usados por Deus para realizar uma salvação imensamente maior e mais gloriosa, a favor da igreja (os “objetos da misericódia”). É crucial perceber que quando Paulo diz que os objetos da misericórdia foram “preparados de antemão”, ele usa um particípio ativo (v. 23). Mas ele usa um particípio passivo médio quando ele descreve os objetos da ira como “prontos para a destruição” (v. 22). Em outras palavras, Deus elegeu ativamente os salvos, mas permitiu passivamente a ruína dos perdidos. Então Paulo afirma que, ao invés de indicar uma falha no plano de Deus, a apostasia de Israel e a escolha de Deus dos gentios foi profetizada por Oséias e Isaías (vv. 25-29; cf. Oséias 1: 10; 2: 23; Isaías 1: 9; 10: 22-23).
O que Paulo declara a seguir é chocante. Ao levar a seção à conclusão, ele pergunta o que devemos concluir. Ao responder sua própria pergunta, ele afirma que os Judeus não alcançaram a salvação por causa de sua descrença (“Por quê? Porque não foi pela fé,” Romanos 9:32)! Se Paulo quissesse ensinar meramente a dupla predestinação, ele então teria dado uma conclusão diferente. Ao invès de destacar os propósitos soberanos de Deus, o apóstolo coloca a culpa única e completamente sobre Israel. A forma que Paulo justapõe a vontade divina que não pode ser detida com a participação humana genuína é de tirar o fôlego. O Molinismo é a posição singular de ser capaz de afirmar ambas.
Para ilustrar o entendimento Molinista da interação entre a presciência e a predeterminação divina em Romanos 9, vamos revisitar a analogia do Dia-D e a expandir. Imagine que Dwight Eisenhower fosse um general infinitamente brilhante, ao ponto de saber de antemão, precisamente quantas baixas seriam incorridas. Mas, além disso, ele saberia exatamente quem sobreviveria e quem não sobreviveria à invasão da Normandia. Agora suponha que o general sabe que se Joe fosse colocado na paia de Omaha ele sobreviverá, mas se Joe desembarcar na paia de Utah ele será uma das fatalidades. Mas Eisenhower também sabe que Joe desembarcando na praia de Utah ao invés na de Omaha resultará fatalidades gerais muito menores. O general poderia escolher a opção que será mais benéfica para as forças de invasão como um todo, mas não para Joe em particular. (A afirmação de Cristo concernente a Judas vem à mente, “Bom seria para esse homem se não houvera nascido.” Mateus 26:24).[54]
Em um ponto importante, a analogia do Dia-D se divide, mas de uma forma que está a favor do Molinismo. Muitas baixas do Dia-D têm pouco ou nada a dizer sobre esta questão.
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