Por Walson Sales
A relação entre o Épico de Enuma Elish e o relato da criação em Gênesis 1-2 tem sido objeto de intenso debate acadêmico. Alguns estudiosos afirmam que a narrativa bíblica teria sido influenciada ou mesmo derivada do mito babilônico. No entanto, uma análise detalhada revela que, apesar de certas semelhanças superficiais, as diferenças são profundas e fundamentais.
Nosso objetivo nesta parte é examinar as semelhanças e diferenças entre os dois relatos e refutar a tese de que Gênesis seja uma mera adaptação do mito babilônico.
1. As Semelhanças Superficiais e seus Reais Significados
Críticos da Bíblia frequentemente apontam semelhanças entre Gênesis e o Enuma Elish para sugerir uma dependência literária ou teológica. Algumas dessas semelhanças incluem:
- Ambos os relatos descrevem uma criação que envolve o céu, a terra e os corpos celestes.
- Ambos mencionam a criação da humanidade.
- Ambos apresentam um período de organização da criação a partir de um estado caótico ou desordenado.
- Ambos contêm uma estrutura que pode ser dividida em sete partes (sete dias em Gênesis e sete tábuas em Enuma Elish).
Contudo, essas semelhanças são apenas estruturais e não provam uma relação de dependência. Muitos povos antigos desenvolveram mitos da criação com elementos comuns, como o uso da água primordial ou a criação do homem a partir de elementos naturais. A questão essencial é: os conteúdos e os significados são semelhantes?
2. Diferenças Fundamentais entre Gênesis e o Enuma Elish
a) Origem do Universo
- No Enuma Elish, o mundo surge do conflito entre divindades. O caos é representado pela deusa Tiamate, que precisa ser derrotada pelo deus Marduque. O cosmo nasce da violência e do derramamento de sangue divino.
- Em Gênesis, a criação acontece pela palavra soberana de um único Deus (Gn 1:1-3). Deus não luta contra forças do caos nem depende de elementos preexistentes. Ele cria tudo ex nihilo (do nada).
A visão bíblica é teologicamente superior, pois apresenta um Deus transcendente e soberano, enquanto o Enuma Elish reflete uma cosmovisão politeísta, com deuses limitados pelo caos.
b) A Natureza da Divindade
- No Enuma Elish, os deuses são seres finitos, sujeitos à paixão, engano e conflitos. Marduque torna-se o principal deus porque é mais forte, não porque seja essencialmente divino.
- Em Gênesis, Deus é eterno, onipotente e santo. Ele não precisa lutar contra outros seres para afirmar Seu domínio. Sua soberania é absoluta desde o princípio.
Enquanto o Enuma Elish reflete um panteão instável, Gênesis apresenta um monoteísmo ético, onde Deus é o criador e mantenedor de tudo.
c) O Propósito da Criação
- No Enuma Elish, o homem é criado para servir aos deuses, assumindo trabalhos pesados para que os deuses possam descansar. A humanidade é um subproduto da guerra cósmica.
- Em Gênesis, o homem é criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1:26-27), com valor intrínseco e um propósito nobre: governar a criação e ter comunhão com Deus.
A diferença é gritante: no relato bíblico, a humanidade tem dignidade, enquanto no Enuma Elish, os homens são meros servos.
d) O Meio da Criação
- No Enuma Elish, Marduque cria o mundo a partir do cadáver de Tiamate, dividindo seu corpo para formar o céu e a terra. A criação surge do sangue e da violência.
- Em *lGênesis, Deus cria por meio de Sua palavra (“E disse Deus: haja luz”, Gn 1:3). Não há luta, sangue ou guerra.
A narrativa bíblica reflete uma ordem racional e intencional na criação, enquanto o Enuma Elish apresenta um processo caótico.
e) A Organização do Tempo
- No Enuma Elish, os astros são criados para regular os festivais dos deuses. O tempo está subordinado ao culto politeísta.
- Em Gênesis, os astros são criados para benefício da humanidade, marcando dias e estações (Gn 1:14-18).
Essa diferença reflete a visão bíblica de um Deus que organiza o mundo para o bem do homem, e não para alimentar caprichos divinos.
3. Explicações para as Semelhanças
As semelhanças entre os dois relatos não indicam que Gênesis copiou o Enuma Elish. Há três possíveis explicações para essas semelhanças:
I. Fonte comum
Ambas as narrativas podem remontar a um conhecimento original da criação, preservado e depois distorcido em mitos politeístas.
II. Influência cultural
Os israelitas, vivendo no Antigo Oriente Próximo, poderiam estar familiarizados com os mitos babilônicos, mas isso não implica dependência.
III. Coincidências linguísticas
Algumas palavras semelhantes, como Tehom (hebraico) e Tiamate (babilônico), não indicam derivação direta, mas raízes semíticas comuns.
Conclusão
A análise das semelhanças e diferenças entre Gênesis e o Épico de Enuma Elish mostra que a tese de que a Bíblia é um plágio do mito babilônico não se sustenta. As semelhanças são superficiais e comuns a muitos mitos antigos, enquanto as diferenças são profundas e revelam uma visão de mundo totalmente distinta.
Gênesis apresenta um Deus único, eterno, soberano e moralmente perfeito, enquanto o Enuma Elish descreve deuses limitados, sujeitos a paixões e violência. A criação em Gênesis ocorre por um ato de vontade e ordem divina, enquanto no Enuma Elish surge do conflito e do caos.
Dessa forma, a narrativa bíblica não pode ser reduzida a um mito derivado da cultura babilônica. Pelo contrário, ela se destaca como uma revelação superior e coerente sobre a origem do universo e da humanidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário