Parte 1: "Argumentos novos", mas não tão novos assim
Por Walson Sales
Desde seus primórdios, a Bíblia tem sido alvo de críticas, desprezo e interpretações maliciosas por parte de seus detratores. O curioso é que, embora muitos desses ataques sejam apresentados como "novas descobertas" ou "revelações chocantes", uma análise séria e informada revela que se tratam, na maioria das vezes, de argumentos antigos, reciclados com roupagem moderna. Os inimigos da Bíblia, ao longo da história, utilizam-se das mesmas acusações, distorções e escárnios que já foram rebatidos com profundidade pela tradição cristã, pela teologia e pela apologética.
Nesta primeira parte da série, analisaremos alguns dos principais argumentos levantados por críticos históricos como Celso e Porfírio, bem como os ecoados por intelectuais modernos e veículos da mídia secular. Faremos uma exposição cuidadosa de tais críticas, revelando sua fragilidade lógica e evidenciando a riqueza e a solidez da resposta apologética cristã.
1. A acusação de que a Bíblia é literariamente inferior
Desde a antiguidade, os críticos da Bíblia desmerecem seu conteúdo por julgarem-na literariamente inferior. Autores clássicos como Celso zombavam dos escritos cristãos, dizendo que eram "ralé de lendas folclóricas, leis esquisitas, cartas mal escritas e biografias de mágicos milagrosos", especialmente quando comparados à elegância de autores romanos como Cícero e Virgílio. Tertuliano chegou a reconhecer que os homens educados de sua época não se aproximavam das Escrituras, a não ser que já fossem cristãos.
Esse tipo de crítica, porém, revela uma superficialidade de análise. Primeiramente, é necessário compreender a diferença entre gêneros literários. A Bíblia não foi escrita com a pretensão de rivalizar com epopeias greco-romanas; ela é uma coletânea de gêneros diversos: narrativas históricas, poesias, leis, provérbios, profecias, cartas, apocalipses, entre outros. Como bem ressalta Norman Geisler, “o valor de um texto não está apenas em sua forma literária, mas em seu conteúdo, em sua coerência interna e em sua capacidade de transformar vidas” (cf. Enciclopédia de Apologética). Além disso, os Salmos, os Cânticos, os Provérbios e os Evangelhos são frequentemente citados como exemplos de literatura com beleza, profundidade e sofisticação.
Comparar a Bíblia a Cícero ou Homero é como comparar tratados jurídicos com poemas líricos: a crítica falha por não compreender os propósitos distintos de cada texto. Como explica Hutchinson, “uma interpretação apropriada desses textos antigos requer estudo e análise pacientes”.
2. A alegação de que os cristãos primitivos eram bárbaros supersticiosos
Outra acusação recorrente é a de que os primeiros cristãos eram ignorantes, bárbaros e supersticiosos. Críticos diziam que os cristãos cometiam atos de canibalismo e incesto, pois falavam em “comer carne” e “beber sangue”, e se chamavam de “irmãos” e “irmãs”.
Essas acusações foram levantadas com evidente ignorância e má-fé. Os primeiros apologistas cristãos, como Justino Mártir, responderam a essas calúnias já no século II. A acusação de canibalismo, por exemplo, é fruto da incompreensão (ou distorção deliberada) da linguagem simbólica da Ceia do Senhor. No Evangelho de João, Jesus afirma: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele” (Jo 6:56), mas trata-se de linguagem espiritual, não literal.
Essas calúnias foram tão maliciosas quanto infundadas, e hoje são desmascaradas até mesmo por historiadores seculares. Rodney Stark, em O triunfo do cristianismo, mostra como os cristãos primitivos, longe de serem bárbaros ignorantes, constituíam um grupo com elevado senso moral e um compromisso notável com o cuidado aos doentes, órfãos e viúvas — comportamento socialmente revolucionário à época.
3. A crítica ao conteúdo “absurdo” das narrativas bíblicas
Celso e Porfírio atacaram os relatos bíblicos com base em seu conteúdo “fantástico” e supostamente absurdo. Celso ridicularizava a narrativa da arca de Noé, chamando-a de uma cópia malfeita do mito de Deucalião, enquanto Porfírio afirmava que Moisés nunca escreveu uma linha sequer da Torá.
Essas críticas são amplamente repetidas por estudiosos modernos que abraçam o ceticismo, o naturalismo metodológico ou as hipóteses documentárias. Contudo, essas suposições carecem de comprovação definitiva. Muitos ataques à autoria mosaica da Torá se baseiam em teorias (como a JEDS) que, embora populares entre certos círculos críticos, não são consenso e vêm sendo crescentemente contestadas.
Geisler e Turek, em Não tenho fé suficiente para ser ateu, mostram como há evidências internas e externas favoráveis à autoria mosaica dos cinco primeiros livros da Bíblia. Além disso, como destaca a Enciclopédia de Apologética, não há evidência conclusiva de que a história do dilúvio tenha sido “plagiada” de mitologias antigas. Pelo contrário, a presença de narrativas semelhantes em diversas culturas pode ser vista como uma confirmação da veracidade de um evento cataclísmico real preservado de forma fragmentada nas tradições humanas.
4. A noção errada de inspiração bíblica
Uma das mais comuns distorções feitas por críticos da Bíblia é a ideia de que os cristãos acreditam que a Escritura foi ditada palavra por palavra por Deus, como os muçulmanos afirmam do Corão. Essa concepção carrega uma caricatura do conceito cristão de inspiração.
O que a doutrina da inspiração bíblica afirma é que Deus, por meio do Espírito Santo, supervisionou o processo de redação das Escrituras de forma que os autores humanos escreveram segundo seus estilos e contextos, mas com fidelidade à vontade divina. Como afirma o apóstolo Paulo, “toda a Escritura é inspirada por Deus” (2Tm 3:16), o que implica origem divina, sem negar o instrumento humano. Isso explica variações estilísticas, ênfases diferentes e a diversidade de gêneros literários. A Bíblia, como bem aponta Hutchinson, não foi escrita em laboratório, mas ao longo de séculos, em línguas diferentes e com perspectivas variadas, preservando, no entanto, uma notável unidade teológica.
5. A confusão entre descrição e prescrição
Thomas Paine, em sua obra The Age of Reason, acusa a Bíblia de promover “crueldade”, “vingança” e “indulgência obscena”. Essa crítica, além de moralista, ignora uma distinção básica entre descrição e prescrição. Descrever um fato histórico (como guerras ou traições) não é o mesmo que prescrevê-lo como norma moral.
Muitos dos eventos registrados na Bíblia, especialmente no Antigo Testamento, são relatos da realidade humana em sua condição caída. Como afirma D. James Kennedy em E se Jesus não tivesse nascido, a própria Bíblia fornece o diagnóstico do pecado humano, não o endosso. Quando o texto bíblico narra, por exemplo, as falhas de Davi ou as injustiças cometidas por reis de Israel, ele o faz com a clara intenção de mostrar a consequência do pecado e a necessidade de redenção.
Confundir o registro de falhas humanas com aprovação divina é uma falácia grosseira, mas recorrente nos ataques seculares.
6. A banalização do conhecimento bíblico por parte da mídia e da academia secular
Os meios de comunicação e certos setores da academia costumam tratar questões teológicas complexas de forma simplista e sensacionalista. Um exemplo mencionado por Hutchinson é a "descoberta" de que há mais de um evangelho cristão, como se isso fosse uma revelação bombástica e inédita. O fato é que a existência de quatro evangelhos, com ênfases diferentes, é conhecida e debatida há dois milênios.
Para o cristão que conhece as Escrituras e a história da igreja, tais manchetes soam como tentativa barata de desestabilizar a fé do público incauto. O verdadeiro escândalo está na ignorância de quem propaga tais “novidades”. Como bem observou Thomas Huxley (não confundir com o crítico Aldous Huxley): “A Bíblia tem sido a Carta Magna dos pobres e dos oprimidos. A espécie humana não tem condições de ignorá-la.”
Conclusão
Os ataques feitos à Bíblia e à fé cristã não são exatamente novos. Eles são velhos conhecidos da apologética, remontando aos séculos II e III, e se repetem até hoje com os mesmos erros, distorções e preconceitos. A estratégia dos críticos é simples: ignorar a complexidade do texto bíblico, caricaturar a fé cristã e apresentar dúvidas antigas como se fossem descobertas revolucionárias.
Contudo, a força da apologética cristã reside precisamente em sua robustez histórica, filosófica e textual. Com milhares de páginas escritas em defesa da Bíblia, o cristianismo oferece respostas fundamentadas, acessíveis e convincentes. O crente que se dedica ao estudo sério das Escrituras e da defesa da fé encontra não apenas refúgio para sua alma, mas também instrumentos para desmascarar os ataques dos chamados “inimigos da Bíblia”.
Assim, esta primeira parte nos convida a enxergar os argumentos críticos com discernimento, firmeza e lucidez, conscientes de que a verdade resiste ao tempo e de que a Bíblia continua sendo — apesar dos séculos de ataques — o livro mais lido, estudado, amado e defendido da história da humanidade.
Bibliografia utilizada e sugerida:
GEISLER, Norman L. Enciclopédia de Apologética: respostas a críticas de descrentes. São Paulo: Vida, 2002.
GEISLER, Norman L.; TUREK, Frank. Não tenho fé suficiente para ser ateu. São Paulo: Editora Vida, 2006.
HUTCHINSON, Robert J. Uma história politicamente incorreta da Bíblia. Tradução Fabíola Moura. Rio de Janeiro: Agir, 2012.
KENNEDY, D. James. E se Jesus não tivesse nascido? São Paulo: Editora Vida, 2003.
STARK, Rodney. The Triumph of Christianity: How the Jesus Movement Became the World's Largest Religion. Harper, San Francisco: HarperOne, 2012.

